Page 48 - 2M A INTRUSA
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                         Padre Assunção voltou-se para Alice, que, sentada a seu lado, riscava a areia
                  do jardim com a ponteira do guarda-sol.


                         – A senhora já foi preceptora?
                         – Nunca...
                         – Não podias ter empregado melhor o teu dia, minha Glória; agradece a D.
                  Alice ter-te feito conhecer infelizes, cuja existência, como disseste, desconhecias... e
                  que te despertaram tão bons sentimentos... Agora, vamo-nos embora, que a tua avó
                  deve estar impaciente!


                         Maria beijou Alice e ainda, depois, voltou-se da rua para lhe dizer adeus com
                  a mão.
                         Que diferença entre esta despedida e o seu primeiro encontro...
                         Padre Assunção ia calado, meditativo. Que espécie singular de mulher era
                  aquela, que, com tão alto senso de moral, se sujeitava ao papel de governanta da
                  casa de um viúvo só? Humilhada em sua posição, maltratada por aquela menina
                  orgulhosa, ela ia chamando habilidosamente a sua simpatia para os pobres e os
                  infelizes. Seria por despeito ou por outro motivo mais maternal e em que a sua
                  personalidade ofendida não tomasse parte? Fosse qual fosse a razão, a verdade é
                  que aquela simples visita a um instituto do seu bairro valera por todos os sermões
                  com que ele procurara abrandar o coração altivo de Glória. O tato sutil daquela
                  mulher começava a encantá-lo; mas vinha-lhe medo de sugerir ao amigo essa
                  impressão. Argemiro estava com o coração repousado, fácil lhe seria o apaixonar-se
                  e o padre não se esqueceria, cem anos que vivesse, das últimas palavras trocadas
                  por ele e a mulher moribunda:


                         – Jura que te não tornarás a casar!
                         – Juro.
                         – Jura por Deus!
                         – Juro pelo teu amor, juro por Deus!

                         Fragilidade do coração humano, por que hás de ser agrilhoada por palavras
                  de ferro que se não podem partir?!
                         Toda a cena da morte de Maria se reproduzia na memória do padre, ali
                  chamado para a última bênção. O som da voz dela ficara-lhe para sempre no ouvido,
                  como nos olhos a sua imagem pálida... E não fora ele só a testemunha daquela
                  terrível promessa: a mãe e o pai da moribunda ouviram com ele a voz de Argemiro,
                  no inquebrantável juramento!
                         As asas do tempo têm forte envergadura; não cansam de voar, mas levam às
                  vezes consigo penas que se não mudam, embora fiquem disfarçadas entre outras
                  que vão nascendo...
                         Assunção sofria por não encontrar remédio para os males futuros, que via
                  próximos. O seu papel estava feito por si, tinha de aceitá-lo, fazendo, como religioso,
                  cumprir-se um juramento dito em nome de Deus. Mas o amigo? mas o homem? mas
                  aquela pobre mulher sozinha? Deveria consentir que a guerreassem como a uma
                  inimiga?
                         Ele não era cego nem era surdo. A obra de Alice era de paz e de benefício.
                  Fora ela que modificara as impetuosidades daquela criança, cuja vontade onipotente
                  dobrava tudo e todos a seu bel-prazer.


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