Page 35 - 2M A INTRUSA
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                         Alice olhou para o padre Assunção com ar de queixa. Para que interrogá-la,
                  naquela hora distraída, acordando-lhe a saudade da família ausente ou perdida?
                         Foi isso que o padre pareceu sentir na expressão da moça.
                         Entretanto, ela disse:

                         – Tive... uma...


                         Como Glória se atrapalhasse, tirou-lhe o trabalho das mãos, adiantando-o um
                  pouco, para influir a menina.


                         – Repare bem; olhe... uma volta... outra volta... vou bem devagar...
                  compreende?

                         Maria arrancou-lhe a agulha e o novelo das mãos com impaciência, morta por
                  fazer ela mesma o trabalho. O padre repreendeu-a; Alice sorriu.

                         – Deixe... são todas assim!


                         "Decididamente, esta rapariga não é uma rapariga vulgar" – pensava de si
                  para si Assunção, olhando para a moça. Havia no seu vestido pobre, de lã barata,
                  uma elegância reservada e distinta. O cabelo, sem frisados, de um castanho escuro,
                  desnudava-lhe a testa clara, enrolando-se num penteado de uma graça discreta. As
                  mãos bem tratadas, longas e pálidas, traçavam os gestos com firmeza de quem
                  conhece o seu valor; e a sua voz, um pouco grave, tinha a doçura de uma queixa
                  disfarçada. As feições vulgares não lhe ofereciam nenhum traço característico, e o
                  padre Assunção impôs-se penitências, para castigar a sua vaidade, presumindo que
                  na curta convivência de duas horas, pudesse conhecer bem uma mulher! Começava
                  a ter medo de simpatizar com esta, e que esse sentimento lhe tolhesse mais tarde
                  ações imprescindíveis para a salvação do amigo e de Maria...
                         Conversaram os três durante todo o serão. E afinal, qual foi o resultado de
                  tantas palavras ditas e ouvidas? Nenhum... no serão o lucro correra todo para Glória,
                  que aprendera a fazer crochê e ainda ficara de uma assentada dona da agulha e da
                  meada de lã.



                  Capítulo V

                         Argemiro ouvia um constituinte no seu escritório da rua da Quitanda. A causa
                  era chocha; o homem expressava-se mal, perdendo palavras sobre palavras. O
                  advogado deixava-o falar, olhando silencioso para os raminhos azuis do papel reles,
                  como se pedisse às paredes encardidas a paciência de que deviam estar
                  impregnadas.
                         Efetivamente, toda aquela casa, onde o cupim voraz trabalhava de parceria
                  com os médicos especialistas, advogados e solicitadores, parecia derrear-se ao
                  peso da sabedoria e da malícia.
                         À noite, fechados os escritórios e cubículos, os ratos, passeando por aqueles
                  corredores e alcovas desertas, comentariam as chicanas, as mentiras e os segredos
                  com que a ciência transfigura a verdade e uns homens enganam os outros... E não
                  seriam poucos os ratos, porque às vezes, mesmo em plena luz do meio-dia, surgia
                  de qualquer canto obscuro o focinhito agudo de um desses roedores mais curiosos,
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