Page 34 - 2M A INTRUSA
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O padre Assunção desceu à sala onde Maria arranhava o teclado com uma
fúria de gata brava. Encostou-se ao piano, ouvindo as desarmonias daquela criança,
em que ele sentia um vago perfume da saudade materna. Quão diferente fora a
mãe, toda delicadeza e graça, do que era agora a filha! Na penumbra da sala
reconstrói-se-lhe o vulto airoso e fino, que os bandós loiros iluminavam de uma luz
branda, de sol de primavera.
Que linda a vira naquela mesma sala àquela mesma hora...
Maria levantou-se com ímpeto. O padre Assunção atraiu-a a si e beijou-a na
testa, com infinita ternura.
– O senhor está trêmulo. Onde está papai?
– Teu pai saiu. Manda acender o gás da saleta e convida D. Alice para vir
passar o serão conosco.
– Não gosto dela...
– Por quê?
– Não sei... e o senhor?
– Eu gosto de toda a gente, minha filha... de uns mais... de outros menos,
mas não quero mal a ninguém. Vai pedir a D. Alice, com muito bom modo, que nos
faça o favor da sua companhia por umas duas horas...
– Papai foi ao teatro?
– Não.
– Onde foi?
– Não sei... daí, talvez tivesse ido ao teatro...
– Sem mim?!
– Sem ti.
– Que desaforo!
– Hein?! Ah! Maria, precisamos mudar de gênio... Não te quero assim... faze o
que te disse, anda.
– Vamos antes para a janela.
– Não. Vai chamar D. Alice.
– Ela é muito enjoada, muito feia!
– Seja como for; quero conhecê-la.
– Ah! se é só por isso! Que bicha!
Maria percebeu, de relance, que havia uma intenção oculta naquela
insistência e movida pela curiosidade acabou por ceder à ordem do padre.
E o serão correu tranqüilamente. Alice trouxera a sua cestinha de trabalho e
um livro de histórias, confiando pouco nos seus méritos de conversadora.
Vendo que Maria se impacientava, propôs ensinar-lhe um ponto fácil de
crochê, com a lã do seu agrado. Maria repeliu o oferecimento; mas, aconselhada
pelo padre, aceitou-o por fim. Ela detestava os trabalhos de agulha, que achava
difíceis de compreender. Alice tinha o condão de explicar tudo com tamanha
simplicidade e clareza que a inteligência mais rebelde se esclarecia às suas palavras
límpidas e teimosas. Maria interessou-se por fim, tentada por uma meada de lã
vermelha; e, ora vendo, ora tentando fazer, guiada pelas mãos pacientes e ágeis da
moça, conseguiu aprender não só esse ponto como outro mais complicado.
– A senhora é paciente. Gosta de crianças?
– Muito!
– Tem irmãs pequenas?
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