Page 19 - 2M A INTRUSA
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Caldas rogou uma praga.
– Que foi isso?! olha se te mandam para o xadrez!...
– Aquele sujeito ia me arrebatando o pacote dos marrons de tua filha! Não lhe
basta a carga. Gente amiga de embrulhos, a dos subúrbios! Olha.
– Não tenho tempo. Entra.
Entraram ambos para um carro.
Cheirava a carvão de pedra e havia calor.
Argemiro continuou, depois de sentado:
– Minha sogra tem razão; ela vive como uma abadessa de convento rico; tem
um prestígio por toda aquela redondeza que nem calculas... Muito boa, muito
esmoler, é o centro de uma população de pobres e de famílias que, se não
dependem dela materialmente, acostumaram-se à sua tutela moral e não a
dispensam. Eu compreendo-a e dou-lhe razão. Há ainda outro motivo que a obriga a
viver na chácara: é o empenho de ter a neta só para si. Minha mulher, não sei se já
te disse, era filha única e criada com um mimo raro; durante o tempo em que vivi
casado tive ocasião de conhecer a mãe mais extremosa que jamais vi. Para mim foi
de uma bondade e de uma ternura encantadora. Amava-me porque via bem quanto
eu fazia a filha feliz... A neta reproduz para ela a filha morta. Glória foi para casa da
avó muito pequena; foi ela quem a criou, julga-se com todo o direito a guardá-la para
sempre... E é para tê-la só para si, nos mesmos lugares em que cresceu minha
mulher, que teima em não sair do seu canto...
– E contigo não se conta?
– Considera-me muito, mas entende, e com razão, que não posso ter Glória
em minha companhia.
– E se te casares?
– Ela sabe bem que isso não acontecerá nunca. Minha sogra herdou o ciúme
da filha... Sabes que minha mulher me pediu que não me tornasse a casar...
– Todas as mulheres rogam aos maridos a mesma coisa, e afinal... todos os
viúvos se casam! Mais depressa que os solteiros, nota.
– Sinto-me bem assim.
– Teu sogro aferra-se também por gosto a este sítio?
– Por gosto e por economia. Ele explica melhor a sua predileção pelo campo,
dizendo que, à sombra das suas mangueiras, se sente mais longe da República...
– Aí está! e eu nunca o ouvi falar em política...
– Não é homem que discuta fatos consumados. Depois, está velho e é amigo
do repouso... Fez-se botânico, para entreter os ócios da chácara. Teve uma
mocidade tempestuosa; a mulher não foi feliz; agora então, para compensá-la, dá-
lhe toda a soberania e é um cordeiro. O bom velho fez esquecido o mau rapaz...
Argemiro reparou que ainda tinha nas mãos distraídas um lequezinho de
papel apanhado à entrada do vagão. Revirou-o entre os dedos: tinha uma vareta
quebrada, unida às outras por um fio de linha.
– Deve ser daquela moça que se remexeu há bocado procurando qualquer
coisa...
Pensei que lhe tivessem roubado o relógio!
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