Page 14 - 2M A INTRUSA
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                  menos graciosa. A beleza sugestiona e dá a tudo que a rodeia um movimento de
                  elegância. Imagina, se ela efetivamente for aleijada. Será escarnecida pelos criados
                  e furtará toda a originalidade à nossa situação!
                         – Preferes o perigo...
                         – Para pôr à prova a minha impassibilidade e dar-me ares de herói –
                  respondeu, rindo, Argemiro. – Preciso exercitar a minha vontade e o meu sangue
                  frio.
                         – Tolices!
                         – Mas que queres que eu te diga, a ti, que me conheces de cor e salteado?!
                  Vens com uns ares esquisitos assustar-me com um futuro que não promete coisa
                  nenhuma! Tu bem sabes que o verdadeiro motivo desta imposição está nisto: ser-
                  me-ia penoso ver agitar-se em torno de mim uma mulher, nesta casa, onde
                  nenhuma outra entrou depois que morreu a minha. A minha viuvez é tão saudosa,
                  tão viúva, que só vivo para senti-la. Não digo senão a ti estas coisas, com medo de
                  parecer ridículo. Tu me compreenderás: foste seu amigo, seu confessor, soubeste
                  mais da sua alma do que eu mesmo, darás razão a este aferro. Amo minha mulher
                  através do tempo, com a mesma tenacidade dos primeiros dias. Ela preside à minha
                  vida, soberanamente. Expliquei à outra, que aí veio, que só uma razão me obrigava
                  a impor-lhe esta cláusula extravagante: não querer dar azo à maledicência e aos
                  comentários dos criados... Como se isso me importasse!
                         – E ela?
                         – Aceitou.
                         – Enfim... acho que fazes mal. Mas isso é contigo. Preferiria que te casasses,
                  apesar...
                         – Ah, isso nunca! Minha mulher, sabes bem, pediu-me que não me tornasse a
                  casar; fez-me jurar... far-lhe-ei a vontade. Tanto mais que nenhuma mulher me
                  interessa, a não ser...
                         – A não ser...
                         – Para essa espécie de amores que só tem um sabor – o da frivolidade. Eu
                  não sou santo, mas sou fiel. Acredites ou não, a verdade é que não me deito nunca
                  sem beijar o retrato de Maria, desde o dia da sua morte pendente à minha cabeceira.
                  Tenho a sensação de que a alma dela não sai desta casa que tanto amava; como
                  que a sinto a envolver-me todo... Lá fora sou um viúvo como outro qualquer, não me
                  abstenho nem da corte à mulher de salão, nem do abraço à mulher do pecado; mas
                  logo que entro em minha casa, parece-me sentir as mãos finas de Maria segurarem
                  as minhas e a sua voz, que não esqueço, repetir-me aquela sua frase ciumenta e
                  que era como que o seu estribilho: "Ama-me, a mim só! a mim só!"

                         Houve uma pausa. Padre Assunção observou:


                         – A nossa Maria não se parece com a mãe...
                         – Nada.
                         – Saiu a ti.
                         – Talvez. Mas vamos jantar, que tenho de ir ao Lírico.

                         À mesa, logo ao sentar-se, Argemiro viu à direita do seu prato um rasgão na
                  toalha, do tamanho de um níquel; mostrou-o com um gesto de enfado ao padre
                  Assunção.

                         – Naturalmente, uma dona de casa faz falta... – observou este.

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