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Assim se chamou e cresceu. Conquanto tivesse recebido um tratamento médico
regular e a sua vida na casa do conselheiro fosse relativamente confortável, o pequeno
Horácio não perdeu nem a reserva nem o enfezado dos seus primeiros anos de vida. A
proporção que crescia, os traços se desenhavam, alguns finos: o corte da testa, límpida
e reta; o olhar doce e triste, como o da mãe, onde havia, porém, alguma coisa a mais
- um fulgor, certas expressões particulares, principalmente quando calado e
concentrado. Não obstante, era feio, embora simpático e bom de ver.
Pelos seis anos, mostrava-se taciturno, reservado e tímido, olhando
interrogativamente as pessoas e coisas, sem articular uma pergunta. Lá vinha um dia,
porém, que o Horácio rompia numa alegria ruidosa; punha-se a correr, a brincar, a
cantarolar, pela casa toda, indo do quintal para as salas, satisfeito, contente, sem motivo
e sem causa.
A madrinha espantava-se com esses bruscos saltos de humor, queria entendê-los,
explicá-los e começou por se interessar pelos seus trejeitos. Um dia, vendo o afilhado a
cantar, a brincar, muito contente, depois de uma porção de horas de silêncio e calma,
correu ao piano e acompanhou-lhe a cantiga, depois, emendou com uma ária qualquer.
O menino calou-se, sentou-se no chão e pôs-se a olhar, com olhos tranqüilos e calmos,
a madrinha, inteiramente delido nos sons que saíam dos seus dedos. E quando o piano
parou, ele ainda ficou algum tempo esquecido naquela postura, com o olhar perdido
numa cisma sem fim. A atitude imaterial do menino tocou a madrinha, que o tomou ao
colo, abraçando-o e beijando-o, num afluxo de ternura, a que não eram estranhos os
desastres de sua vida sentimental.
Pouco depois a mãe lhe morria. Até então vivia numa semidomesticidade. Daí
em diante, porém, entrou completamente na família do Conselheiro Calaça. Isso,
entretanto, não lhe retirou a taciturnidade e a reserva; ao contrário, fechou-se em si e
nunca mais teve crises de alegria.
Com sua mãe ainda tinha abandonos de amizade, efusões de carícias e abraços.
Morta que ela foi, não encontrou naquele mundo tão diferente, pessoa a quem se
pudesse abandonar completamente, embora pela madrinha continuasse a manter uma
respeitosa e distante amizade, raramente aproximada por uma carícia, por um afago.
Ia para o colégio calado, taciturno, quase carrancudo, e, se, pelo recreio, o contágio
obrigava-o a entregar-se à alegria e aos folguedos, bem cedo se arrependia, encolhia-
se e sentava-se, vexado, a um canto. Voltava do colégio como fora, sem brincar pelas
ruas, sem traquinadas, severo e insensível. Tendo uma vez brigado com um colega,
a professora o repreendeu severamente, mas o conselheiro, seu
padrinho, ao saber do caso, disse com rispidez: "Não continue, hein ? O senhor não
pode brigar - está ouvindo?"
E era assim sempre o seu padrinho, duro, desdenhoso, severo em demasia com o
pequeno, de quem não gostava, suportando-o unicamente em atenção à mulher -
maluquices da Laura, dizia ele. Por vontade dele, tinha-o posto logo num asilo de
menores, ao morrer-lhe a mãe; mas a madrinha não quis e chegou até a conseguir que o
marido o colocasse num estabelecimento oficial de instrução secundária, quando acabou
com brilho o curso primário.