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violentamente.  Com afinco estudava, lia os compêndios; mas não compreendia, nada
                  retinha. O  seu  entendimento  como  que vazava. Voltava, lia, lia e lia e, em seguida,
                  virava as folhas sofregamente, nervosamente, como se quisesse descobrir debaixo delas
                  um  outro  mundo  cheio  de  bondade  e  satisfação.  Horas  havia  que  ele  desejava
                  abandonar aqueles livros, aquela lenta aquisição de noções e idéias, reduzir-se e anular-
                  se;  horas  havia, porém, que um desejo ardente lhe vinha de saturar-se de saber, de
                  absorver todo o conjunto das ciências e das artes.  Ia  de  um  sentimento  para  outro;  e
                  foi vã a agitação. Não encontrava solução, saída; a desordem das idéias e a incoerência
                  das sensações não lhe podiam dar uma e cavavam-lhe a saúde. Tornou-se mais flébil,
                  fatigava-se facilmente. Amanhecia cansado de dormir e dormia cansado de estar em
                  vigília. Vivia irritado, raivoso, não sabia contra quem.

                        Certa manhã, ao entrar na sala de jantar, deu com o padrinho a ler os jornais,
                segundo o seu hábito  querido.

                        - Horácio, você passe na casa do Guedes e traga-me a roupa que mandei
                          consertar.

                        - Mande outra pessoa buscar.

                        - O que?

                        - Não trago.

                        - Ingrato! Era de esperar...

                        E o menino ficou admirado diante de si mesmo, daquela saída de sua habitual
                        timidez.

                        Não sabia onde tinha ido buscar aquele desaforo imerecido, aquela tola má-
                        criação; saiu-lhe como uma coisa soprada por outro e que ele unicamente
                        pronunciasse.

                        A  madrinha  interveio,  aplainou  as  dificuldades;  e,  com  a  agilidade  de  espírito
                  peculiar ao sexo, compreendeu o estado d'alma do rapaz. Reconstituiu-o com os gestos,
                  com  os  olhares,  com  as  meias  palavras,  que  percebera  em  tempos  diversos  e  cuja
                  significação lhe escapara no momento, mas que aquele ato, desusadamente brusco e
                  violento, aclarava por completo. Viu-lhe o sofrimento de viver  à  parte,  a transplantação
                  violenta,  a falta de simpatia, o  princípio  de ruptura que existia em sua  alma, e que o
                  fazia passar aos extremos das sensações e dos atos.

                        Disse-lhe coisas doces, ralhou-o, aconselhou-o, acenou-lhe com a fortuna, a
                        glória e o nome.
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