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E  ambas,  pelo  fim  dessa  transfiguração  inopinada,  entreolharam-se
                  surpreendidas, pensando que se acabavam de conhecer naquele instante, tendo  até ali
                  vagas  notícias  uma da outra,  como  se vivessem longe, tão longe, que só agora haviam
                  distinguido bem nitidamente o tom de voz próprio a cada uma delas.

                        No entendimento peculiar de uma e de outra, sentiram-se irmãs na desoladora
                  mesquinhez da nossa natureza e iguais, como  frágeis conseqüências de  um misterioso
                  encadear  de  acontecimentos,  cuja  ligação  e  fim  lhes  escapavam  completamente,
                  inteiramente...

                        A dona da casa, à cabeceira da mesa de jantar, manteve-se silenciosa,  correndo,
                  de  quando  em quando, o olhar ainda úmido pelas ramagens do atoalhado, indo, às
                  vezes, com ele até à bandeira da porta defronte, donde pendia a gaiola do canário, que
                  se sacudia na prisão niquelada.

                        De pé, a criada avançou algumas palavras. Desculpou-se inábil e despediu-se
                        humilde.

                        - Deixe-se disso, Gabriela, disse Dona Laura. Já passou tudo; eu não guardo rancor;
                  fique! Leve o pequeno amanhã... Que vai você fazer por esse mundo afora ?

                        - Não senhora... Não posso... É que...

                        E de um hausto falou com tremuras na voz:

                        - Não posso, não minh'ama; vou-me embora!

                        Durante um mês, Gabriela andou de bairro em bairro, à procura de aluguel. Pedia
                  lessem-lhe anúncios, corria, seguindo as indicações, a  casas de gente de toda a  espécie.
                  Sabe cozinhar?  perguntavam. - Sim, senhora, o trivial. - Bem e lavar? Serve de ama? -
                  Sim, senhora; mas se fizer uma coisa, não quero fazer outra. - Então, não me serve,
                  concluía  a  dona  da  casa.  É  um  luxo...  Depois  queixam-se  que  não  têm  aonde  se
                  empreguem...

                        Procurava  outras  casas;  mas  nesta  já  estavam  servidas,  naquela  o  salário  era
                  pequeno e naquela outra queriam que dormisse em casa e não trouxesse o filho.

                        A criança, durante esse mês, viveu relegada a um canto da casa de uma conhecida
                  da mãe. Um pobre quarto de estalagem, úmido que nem uma masmorra. De manhã, via
                  a mãe sair; à tarde, quase à boca da noite, via-a entrar desconfortada. Pelo dia em fora,
                  ficava  num  abandono  de  enternecer.  A  hóspede,  de  longe  em longe, olhava-o cheia
                  de raiva. Se chorava aplicava-lhe palmadas e gritava colérica: " Arre diabo! A vagabunda
                  de tua mãe anda saracoteando... Cala a boca, demônio! Quem te fez, que te ature..."

                        Aos poucos, a criança torrou-se de medo; nada pedia, sofria fome, sede, calado.
                  Enlanguescia a olhos vistos e sua mãe, na caça de aluguel, não tinha tempo para levá-lo
                  ao doutor  do  posto  médico.  Baço, amarelado, tinha as pernas que nem palitos e o
                  ventre como o de um batráquio. A mãe notava-lhe o enfraquecimento, os progressos da
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