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Não  foi  sem  resistência  que  ele  acedeu,  mas  os  rogos  da  mulher,  que  agora
                  juntava à afeição pelo pequeno uma secreta esperança no seu talento, tanto fizeram que
                  o conselheiro se empenhou e obteve.

                        Em começo, aquela adoção fora um simples capricho de Dona Laura; mas, com o
                  tempo,  os  seus  sentimentos  pelo  menino  foram  ganhando  importância  e  ficando
                  profundos, embora exteriormente o  tratasse com um pouco de cerimônia.

                        Havia nela mais medo da opinião, das sentenças do conselheiro, do que mesmo
                  necessidade  de disfarçar o que realmente sentia, e pensava.

                        Quem a conheceu solteira, muito bonita, não a julgaria capaz de tal afeição; mas,
                  casada,  sem  filhos, não encontrando no casamento nada que sonhara, nem mesmo o
                  marido, sentiu o vazio da existência,  a inanidade dos seus sonhos, o pouco alcance da
                  nossa  vontade;  e,  por  uma  reviravolta  muito  comum,  começou a  compreender
                  confusamente todas as vidas e almas, a compadecer-se e a amar tudo, sem amar bem
                  coisa  alguma.  Era  uma  parada  de  sentimento  e  a  corrente  que  se  acumulara  nela,
                  perdendo-se do seu leito natural, extravasara e inundara tudo.

                        Tinha um amante e já tivera outros, mas não era bem a parte mística  do  amor
                  que procurara neles. Essa, ela tinha certeza que jamais podia encontrar; era a parte dos
                  sentidos tão exuberantes e  exaltados depois das suas contrariedades morais.

                        Pelo tempo em que o seu afilhado entrara para o colégio secundário, o amante
                  rompera com ela; e isto a fazia sofrer, tinha medo de não possuir mais beleza suficiente
                  para arranjar um outro como "aquele". e a esse desastre sentimental não foi estranha a
                  energia  dos seus rogos junto ao marido para admissão do Horácio no estabelecimento
                  oficial.

                        O conselheiro, homem de mais de sessenta anos, continuava superiormente frio,
                  egoísta e fechado, sonhando sempre uma posição mais alta ou que julgava mais alta.
                  Casara-se por necessidade decorativa. Um homem de sua posição não podia continuar
                  viúvo;  atiraram-lhe  aquela  menina  pelos  olhos,  ela  o  aceitou  por  ambição  e  ele  por
                  conveniência. No mais, lia os jornais,  o  câmbio  especialmente,  e, de manhã  passava os
                  olhos nas apostilas de sua cadeira - apostilas por ele organizadas, há quase trinta anos,
                  quando dera as suas primeiras lições, moço, de vinte e cinco anos, genial nas aprovações
                  e nos prêmios.

                        Horácio, toda a manhã, ao sair para o colégio, lá avistava o  padrinho  atarraxado
                  na  cadeira  de balanço a ler atentamente o jornal: " A bênção, meu padrinho ! " - "Deus
                  te abençoe", dizia ele, sem menear a cabeça do espaldar e no mesmo tom de voz com
                  que pediria os chinelos à criada.
                        Em geral, a madrinha estava deitada ainda e o menino  saía  para o  ambiente
                  ingrato  da  escola,  sem  um  adeus,  sem  dar  um  beijo,  sem  ter  quem  lhe  reparasse
                  familiarmente  o paletó.  Lá ia.  A  viagem de bonde, ele a fazia humilde, espremido a um
                  canto do veículo, medroso que seu paletó roçasse as sedas de uma rechonchuda senhora
                  ou  que  seus  livros  tocassem  nas  calças  de  um  esquelético  capitão  de  uma  milícia
                  qualquer.  Pelo  caminho,  arquitetava  fantasias;  seu  espírito  divagava  sem  nexo.  À
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