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Há muito que tua mãe morreu? indagou o coronel.

                        - Há oito anos quase, respondeu ela.

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                        - Vinte e seis anos, fez ela. Fiquei órfã aos dezoito. Durante esses oito anos tenho
                  rolado por esse mundo de Cristo e comido o pão que o diabo amassou. Passando de mão
                  em mão, ora nesta, ora naquela, a minha vida tem sido um tormento. Até hoje só tenho
                  conhecido três homens que me dessem alguma coisa; os outros Deus me livre deles! - só
                  querem meu corpo e o meu trabalho. Nada me davam, espancavam-me, maltratavam-
                  me. Uma vez, quando vivia com um sargento do Regimento de Polícia, ele chegou em
                  casa embriagado, tendo jogado e  perdido  tudo, queria obrigar-me a lhe dar trinta mil-
                  réis, fosse como fosse.

                         Quando  lhe  disse  que  não  tinha  e  o  dinheiro  das  roupas  que  eu  lavava,  só
                chegava naquele mês para pagar a casa, ele fez um escarcéu. Descompôs-me. Ofendeu-
                me. Por fim, cheio de fúria agarrou-me pelo pescoço, esbofeteou-me, deitou-me em terra,
                deixando-me sem fala e a tratar-me no hospital. Um outro - um malvado em cujas mãos
                não sei como fui cair - certa vez, altercamos, e deu-me uma facada do lado esquerdo, da
                qual ainda tenho sinal.! Tem sido um tormento... Bem me dizia minha mãe: toma cuidado,
                minha  filha, toma cuidado. Esses homens só querem nosso corpo por segundos, depois
                vão-se e  nos  deixam  um  filho  nos quartos, quando não nos roubam como fez teu pai
                comigo...

                        - Como?... Como foi isso? interrogou admirado o coronel.

                        - Não  sei  bem  como  foi,  retrucou  ela.  Minha  mãe  me  contava  que  ela  era
                  honesta; que  vivia  na cidade do Cabo com seus pais, de cuja companhia fora seduzida
                  por um caixeiro português que lá aparecera e com quem veio para o Recife. Nasci deles
                  e dous meses, ou mais depois do meu nascimento, meu pai foi ao Cabo liquidar a herança
                  (um sítio, uma vaca, um cavalo) que coubera à minha mãe por morte de seus pais. Vindo
                  de receber a herança, partiu dias depois para aqui e nunca mais ela soube notícias dele,
                  nem do dinheiro, que, vendido o herdado, lhe ficara dos meus avós.

                        - Como se chamava teu pai? indagou o comendador com estranho entono.

                        - Não me 1embra bem; era Mota ou Costa... Não sei... Mas o que é isso? disse ela
                  de  repente, olhando o comendador. Que tem o senhor ?

                        - Nada... Nada... retrucou o comendador experimentando um sorriso. Você não se
                  1embra das feições desse homem? interrogou ele.

                        - Não me 1embra, não. Que interesse! Quem sabe que o senhor não é meu pai?
                          gracejou ela.

                        O  gracejo  caiu  de  chofre  naqueles  dous  espíritos  tensos,  como  uma  ducha
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