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pela inteligência. Ao fim, sentia-se como que liqüefeito, vaporizado nas coisas era como
se perdesse o feitio humano e se integrasse naquele verde escuro da mata ou naquela
mancha faiscante de prata que a água a correr deixava na encosta da montanha. Com
que volúpia, em tais momentos, ele se via dissolvido na natureza, em estado de
fragmentos, em átomos, sem sofrimento, sem pensamento, sem dor! Depois de ter ido
ao indefinido, apavorava-se com o aniquilamento e voltava a si, aos seus desejos, às suas
preocupações com pressa e medo.
- Salvador, de que gostas mais, do inglês ou francês?
- Eu do francês; e tu?
- Do inglês. –
- Porque? Porque pouca gente o sabe.
A confidência saía-lhe a contragosto, era dita sem querer. Temeu que o amigo o
supusesse vaidoso. Não era bem esse sentimento que o animava; era uma vontade de
distinção, de reforçar a sua individualidade, que ele sentia muito diminuída pelas
circunstâncias ambientes. O amigo não entrava na natureza do seu sentimento e
despreocupadamente perguntou: - Horácio, já assististe uma festa de São João? -
Nunca. - Queres assistir uma?- Quero, onde ? - Na ilha, em casa de meu tio.
Pela época, a madrinha consentiu. Era um espetáculo novo; era um outro
mundo que se abria aos seus olhos. Aquelas longas curvas das praias, que perspectivas
novas não abriam em seu espírito! Ele se ia todo nas cristas brancas das ondas e nos
largos horizontes que descortinava.
Em chegando a noite, afastou-se da sala. Não entendia aqueles folguedos, aquele
dançar sôfrego, sem pausa, sem alegria, como se fosse um castigo. Sentado a um banco
do lado de fora, pôs-se a apreciar a noite, isolado, oculto, fugido, solitário, que se sentia
ser no ruído da vida. Do seu canto escuro, via tudo mergulhado numa vaga semiluz. No
céu negro, a luz pálida das estrelas; na cidade defronte, o revérbero da iluminação;
luz, na fogueira votiva, nos balões ao alto, nos foguetes que espoucavam, nos fogaréus
das proximidades e das distâncias - luzes contínuas, instantâneas, pálidas, fortes; e todas
no conjunto pareciam representar um esforço enorme para espancar as trevas daquela
noite de mistérios.
No seio daquela bruma iluminada, as formas das árvores boiavam como
espectros; o murmúrio do mar tinha alguma coisa de penalizado diante do esforço dos
homens e dos astros para clarear as trevas. Havia naquele instante, em todas as almas,
um louco desejo de decifrar o mistério que nos cerca; e as fantasias trabalhavam para
idear meios que nos fizessem comunicar com o Ignorado, com o Invisível. Pelos cantos
sombrios da chácara pessoas deslizavam. Iam ao poço ver a sombra - sinal de que
viveriam o ano; iam disputar galhos de arruda ao diabo; pelas janelas, deixavam copos
com ovos partidos para que o sereno, no dia seguinte, trouxesse as mensagens do Futuro.
O menino, sentindo-se arrastado por aquele frêmito de augúrio e feitiçaria,
percebeu bem como vivia envolvido, mergulhado, no indistinto, no indecifrável; e uma
onda de pavor, imensa e aterradora, cobriu-lhe o sentimento.
Dolorosos foram os dias que se seguiram. O espírito sacolejou-lhe o corpo