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aquele príncipe do romance que confessa ao primo: "Pois você não vê logo que eu tenho
                  vergonha,  nesta época, de me  fingir  de Carlos Magno, com o tal  manto de arminho,
                  abelhas, coroas, ceptro - você não vê mesmo? Fique você com a coroa, se quiser!"

                        Dom  Carlos  não  falava  assim,  pois  não  era  dado  a  blagues,  nem  a  boutades;
                  mas,  de  quando  em quando, ao sair dos rápidos accessos de  mutismo e  melancolia a
                  que  era  sujeito, no  meio da conversação, dizia como num suspiro:

                        - No dia em que for imperador, o que farei, meu Deus !

                        Um belo dia, um príncipe tão bom como este aparece assassinado num caminho
                  que atravessa uma floresta do seu domínio de Cubahandê, nos arredores da capital.

                        A dor foi imensa em todos os pontos do império e ninguém sabia explicar porque
                  pessoa tão boa, tão ativamente  boa,  seria  trucidada  assim  misteriosamente.  Naquela
                  manhã,  saíra  a  cavalo, na  Hallumatu,  a  sua égua negra, de um ébano reluzente, como
                  carbúnculo; e ela voltara desbocada, sem o cavalheiro, para as estrebarias. Procuraram-
                  no e foram encontrá-lo cadáver com uma punhalada no peito.

                        O  povo  perquiriu  os  culpados  e  boquejou  que  o  assassínio  devia  ter  sido  a
                  mandado de uns parentes longínquos da família imperial, em nome da qual, há vários
                  séculos,  o  seu  chefe  e  fundador  tinha  desistido  das  suas  prerrogativas  e  privilégios
                  feudais, para traficar com escravos  malaios.  Enriquecidos,  aos  poucos, entraram de
                  novo na hierarquia de que se tinham degradado voluntariamente, mas não obtiveram o
                  título de príncipes imperiais. Eram somente príncipes.

                        O  assassinato  ficou  esquecido  e  o  velho  Rei  Sanjon  teimava  em  viver.  Fosse
                  enfraquecimento das faculdades, originado pela velhice, fosse o emprego de sortilégios
                  e feitiços, como querem os incrédulos cronistas de Bruzundanga, o fato é que o velho
                  imperador  entregou-se  de  corpo  e  alma  ao  mais  evidente  representante  da  família
                  aparentada, a dos Hjanlhianes, o tal que se havia degradado. Fazia este e desfazia no
                  império; e falou-se mesmo em permiti-los voltar às dignidades imperiais,  mediante um
                  senatusconsultum. A isso, o povo e sobretudo o exército se opuseram e começaram a
                  murmurar.  O  exército  era  republicano,  queria  uma  república  de  verdade,  na  sua
                  ingenuidade e inexperiência política; os Hjanlhianes logo perceberam que, por aí, podiam
                  chegar a altas dignidades e muitos deles se fizeram republicanos.

                        Entretanto,  o  bisneto  de  Sanjon  continuava  seqüestrado  no  castelo  de
                  Cubahandê. Devia ter sete ou oito anos.

                        Quando menos se esperava, num dado momento em que se representava, no
                  Teatro Imperial da Bruzundanga, o Brutus de Voltaire, vinte generais, seis coronéis, doze
                  capitães e cerca de oitenta alferes proclamaram a república e saíram para a rua, seguidos
                  de  muitos  paisanos  que  tinham  ido  buscar  as  armas  de  flandres,  na  arrecadação  do
                  teatro, a gritar: Viva a república! Abaixo o tirano! etc., etc.

                        O povo, propriamente, vem assim, àquela hora, nas janelas para ver o que se
                  passava; e,  no dia seguinte, quando se soube da verdade, um olhava para o  outro e
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