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quase só, um velho professor jubilado da Escola Militar, muito conhecido pelo seu gênio
estranhamente concentrado e sombrio. Não se lhe conheciam parentes; e isto, há mais
de quarenta anos. Jubilara-se e metera-se naquele ermo recanto do nosso município,
deixando mesmo de freqüentar o seu divertimento predileto, por deficiência de
condução. Consistia este no café-concerto, onde houvesse anafadas mulheres
estrangeiras e saracoteios de raparigas no palco. Era um esquisitão, o doutor Campos
Bandeira, como se chamava ele. Vestia-se como ninguém se vestiu e se vestirá: calças
brancas, em geral; colete e sobrecasaca curta, ambos de alpaca; chapéu mole, partido ao
centro; botins inteiriços de pelica; e sempre com chapéu-de-chuva de cabo de volta. Era
amulatado, com traços indiáticos e tinha um lábio inferior muito fora do plano do
superior. Pintava e, por sinal, muito mal, os cabelos e a barba; e um pequeno pince-nez,
sem aros, de vidros azulados, acabava-lhe a fisionomia original.
Todos o sabiam homem de preparo e de espírito; tudo estudava e tudo conhecia.
Dele contavam-se muitas anedotas saborosas. Sem amigos, sem parentes, sem família,
sem amantes, era, como examinador, de uma severidade inexorável. Não cedia a
empenhos de espécie alguma, viessem donde viessem. Era o terror dos estudantes.
Não havia quem pudesse explicar o estranho modo de vida que levava, não havia quem
atinasse com a causa oculta que o determinava. Que desgosto, que mágoa o fizera assim
? Ninguém sabia.
Econômico, lecionando, e muito particularmente, devia possuir um pecúlio
razoável. Os rapazes calculavam em cento e tantos contos.
Se era tido como estranho. ratão original, mais estranho, mais ratão, mais
original pareceu ele a todos, quando se foi estabelecer, depois de jubilado. naquele
cafundó do Rio de Janeiro:
- Que maluco! - diziam.
Mas o doutor Campos Bandeira (ele não o era, mas assim o tratavam), por não
os ter, não ouviu amigos e meteu-se no Timbó. Hoje, há lá uma magnífica estrada de
rodagem, que a prefeitura em dias de lucidez construiu; mas, naquele tempo, era um
atoleiro. A maioria dos cariocas não conhece essa obra útil da nossa municipalidade; pois
olhem: se fosse em São Paulo, já os jornais e revistas daqui teriam publicado fotografias,
com artigos estirados, falando da energia paulista, dos bandeirantes, de José Bonifácio e
da valorização do café.
O doutor Campos Bandeira, apesar da péssima estrada que lá havia, por aquela
época, e vinha trazê- lo ao ponto dos bondes de Inhaúma, lá se estabeleceu, entregando-
se de corpo e alma aos seus trabalhos de química agrícola.
Tinha quatro trabalhadores para a roça e tratamento de animais; e, para o interior
de casa, só tinha um serviçal. Era um pobre diabo de bagaço humano, espremido pelo
desânimo e pelo álcool, que acudia, nas vendas dos arredores, pelo apelido de "Casaca",
por andar sempre com um fraque rabudo.
O velho professor o tinha em casa mais por consideração do que por qualquer
outro motivo. Quase não fazia nada. Bastava-lhe possuir alguns níqueis, para que não