Page 29 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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Onipotente Deus, que ao Vosso bem-aventurado mártir S. Lourenço destes esforço para triunfar
               dos incêndios e dos seus tormentos, concedei que se extinga em nós o fogo...


               Ah! Deus de bondade! esta pobre senhora, assim velha e assim solteira, está muito mal!


               S. Luis e S. Lourenço, entretanto, gozam da relativa liberdade de vir quando querem. Santo Onofre
               porém, pequeno e barbadinho, vive estrangulado no cós das saias das senhoras para ouvir todas
               as manhãs esta suprema ironia súplice:


               Meu glorioso Santo Onofre bispo, confessor de meu senhor Jesus Cristo, em Roma fostes aos
               pés do padre santo vos ajoelhar, pedistes pão para as solteiras, pão para as casadas, pão para
               as viúvas, pão para as donzelas. Pedi para mim também que sou sua inquilina. Meu glorioso Santo
               Onofre, vos peço que me deis comida para comer, roupa para vestir, dinheiro para gastar e graça
               para vos servir. Amém!


               E  Santo  Onofre  não  protesta,  não  grita,  não  foge,  como  S.  Silvestre,  educado  na  humildade
               evangélica, tolera este lamentável pedido:


               Valha-me o senhor S. Silvestre, pelas três camisas que veste, no ano de trinta e sete, matastes
               e feristes e abrandastes os corações dos mouros, as bocas das serpentes. Assim eu abrandarei
               o coração dos meus inimigos que venham ajoelhar-se aos meus pés, porque Deus que é Deus
               pode e acaba com tudo que quer, traga teu coração debaixo de teu pé esquerdo...


               Que diz o venerável Santo a esse coração sem concordância  pronominal  metido miseravelmente
               debaixo de um pé? Talvez nem saiba a mísera crendice, e ande lá por cima no azul, esquecido da
               maldade humana...As almas, apesar de benditas, porém, já por aqui andaram, já sentiram o amor,
               o ciúme e o medo, e a oração que as incensa é também velhaca e cheia de sandices:


               Minhas almas santas benditas, aquelas que são do  mesmo senhor Jesus  Cristo, por aquelas que
               morreram enforcadas, por aquelas três almas que morreram degoladas, por aquelas três almas
               que morreram a ferro frio, juntas todas três, todas seis a todas nove, para darem três pancadas
               no coração dos inimigos, que eles ficarão humildes a mim debaixo de paz e consolação, a ponto
               de terem olhos e não me ver, pernas e não me alcançarem, braços e não me agarrarem – para
               sempre e sem fim.


               Os homens, à solta, no recato das alcovas deliram calmamente. Há gente que antes de sair reza
               a oração de S. Jorge, para não ser ofendida pelos seus inimigos, e a de Santa Catarina para
               alcançar o perdão dos pecados; há senhoras que aspergem os cantos da casa com água benta,
               dizendo  a  oração  da  bênção  das  casas,  que  consta  de  382  palavras,  e  a  oração  de  Santo
               Anastácio contra os demônios; há seres pensantes que trazem ao pescoço a oração de S. Roberto
               contra os feitiços, oração que, segundo o editor, estava junto a uma "milagrosa carta, achada em
               um lugar três léguas distante de S. Marcos, escrita com letras de ouro e pela mão de Deus Nosso
               Senhor, Filho da Virgem Maria"!


               É pois natural que as almas não se ofendam  com um mau pedido e que S. Marcos – pobre santo!
               sorria  quando  ouvia  à  meia-noite  esta  tremenda  oração  brava,  que  lembra  as  cenas  de
               enfeitiçamento medievo:
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