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                         – Conheço o Argemiro. Basta-me. Ele já nos expôs mais de uma vez em que
                  condições tinha essa moça em casa. Se ele lhe entrega a filha é porque a julga
                  digna de a receber – e não podes negar a influência moral que ela tem exercido
                  sobre tua neta! Glória repete palavras e pratica ações que refletem um grande senso
                  moral. É ou não é verdade isso?
                         – Quem nos diz que não seja essa uma obra de hipocrisia?
                         – Ora, adeus!
                         – Vocês estão cegos!
                         – Só tu vês!
                         – Só eu.
                         – Pois antes fosses cega, que a tua clarividência só te faz mal. De que te
                  serve perceber ao longe tanta coisa que ninguém mais vê?
                         – Serve-me para defender quem não tem mais ninguém por si!
                         – Se tua filha do céu te escutasse, choraria!
                         – Fazes bem em dizer tua filha. Ela é só minha, agora!
                         – Bom... acalma-te...
                         – Estou calma.
                         – Nesse caso, dir-te-ei ainda que o Argemiro é senhor do seu nariz e que nós
                  não temos autoridade, absolutamente, para metermos o bedelho na sua vida. Fará o
                  que muito bem quiser. De mais, que jurou ele a Maria? Não se tornar a casar.
                  Casou? Não. Logo...
                         – Mas vive como tal...
                         – Sabes que mais?! Deixa-me trabalhar... lamento-te muito, mas não posso
                  argumentar contigo. 325... parece-me que era este o número...
                         – Como és frio...
                         – Sou velho; e tenho juízo.
                         – Também eu sou velha...
                         – Mas és mulher, e vives mais do sentimento que da razão... Alimentas a
                  idéia de que tua filha sente, sofre, existe, e exiges que ela ocupe um lugar que
                  infelizmente está bem vazio... Deleitas-te em revolver saudades; fixas-te em
                  pensamentos de que deverias fugir; a morte assusta-te; a idéia do nada apavora-te e
                  crias então um mundo à parte para tua filha, que, se continua a viver, é só no teu
                  cérebro, mais ainda do que no teu coração! Reage contra essa tortura...
                         – É a minha consolação...
                         – É o teu desespero!
                         – Não é... talvez deva ser como dizes... mas eu agarro-me a esta ilusão, para
                  poder suportar a saudade...
                         – Não chores...
                         – Sinto-me tão sozinha!
                         – E eu?
                         – Fugiste-me...
                         – Não, minha velha, estou e estarei contigo até a morte. O que te fiz sofrer na
                  mocidade, quero redimir na velhice... Tua mãe, sim, teria razão de queixa contra
                  mim; tu não a tens contra o Argemiro! Nossa filha, repara o que eu digo – nossa filha
                  – gozou enquanto viveu: já foi uma felicidade! Tu esperaste por mim algumas vezes
                  até alta noite... lembra-te! Ela nunca esperou... Fiz-te chorar, do que me arrependo;
                  o Argemiro só a fez sorrir... Foi por causa do teu ciúme de esposa, muito justificado,
                  que escolheste este ermo para viver... Sujeitei-me. Venceste. Hoje, arrependido, vivo
                  cosido ao agasalho das tuas saias e acredita que, se morreres antes de mim... creio
                  que me fecharei vivo no caixão...

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