Page 84 - 2M A INTRUSA
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– Conheço o Argemiro. Basta-me. Ele já nos expôs mais de uma vez em que
condições tinha essa moça em casa. Se ele lhe entrega a filha é porque a julga
digna de a receber – e não podes negar a influência moral que ela tem exercido
sobre tua neta! Glória repete palavras e pratica ações que refletem um grande senso
moral. É ou não é verdade isso?
– Quem nos diz que não seja essa uma obra de hipocrisia?
– Ora, adeus!
– Vocês estão cegos!
– Só tu vês!
– Só eu.
– Pois antes fosses cega, que a tua clarividência só te faz mal. De que te
serve perceber ao longe tanta coisa que ninguém mais vê?
– Serve-me para defender quem não tem mais ninguém por si!
– Se tua filha do céu te escutasse, choraria!
– Fazes bem em dizer tua filha. Ela é só minha, agora!
– Bom... acalma-te...
– Estou calma.
– Nesse caso, dir-te-ei ainda que o Argemiro é senhor do seu nariz e que nós
não temos autoridade, absolutamente, para metermos o bedelho na sua vida. Fará o
que muito bem quiser. De mais, que jurou ele a Maria? Não se tornar a casar.
Casou? Não. Logo...
– Mas vive como tal...
– Sabes que mais?! Deixa-me trabalhar... lamento-te muito, mas não posso
argumentar contigo. 325... parece-me que era este o número...
– Como és frio...
– Sou velho; e tenho juízo.
– Também eu sou velha...
– Mas és mulher, e vives mais do sentimento que da razão... Alimentas a
idéia de que tua filha sente, sofre, existe, e exiges que ela ocupe um lugar que
infelizmente está bem vazio... Deleitas-te em revolver saudades; fixas-te em
pensamentos de que deverias fugir; a morte assusta-te; a idéia do nada apavora-te e
crias então um mundo à parte para tua filha, que, se continua a viver, é só no teu
cérebro, mais ainda do que no teu coração! Reage contra essa tortura...
– É a minha consolação...
– É o teu desespero!
– Não é... talvez deva ser como dizes... mas eu agarro-me a esta ilusão, para
poder suportar a saudade...
– Não chores...
– Sinto-me tão sozinha!
– E eu?
– Fugiste-me...
– Não, minha velha, estou e estarei contigo até a morte. O que te fiz sofrer na
mocidade, quero redimir na velhice... Tua mãe, sim, teria razão de queixa contra
mim; tu não a tens contra o Argemiro! Nossa filha, repara o que eu digo – nossa filha
– gozou enquanto viveu: já foi uma felicidade! Tu esperaste por mim algumas vezes
até alta noite... lembra-te! Ela nunca esperou... Fiz-te chorar, do que me arrependo;
o Argemiro só a fez sorrir... Foi por causa do teu ciúme de esposa, muito justificado,
que escolheste este ermo para viver... Sujeitei-me. Venceste. Hoje, arrependido, vivo
cosido ao agasalho das tuas saias e acredita que, se morreres antes de mim... creio
que me fecharei vivo no caixão...
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