Page 85 - 2M A INTRUSA
P. 85

www.nead.unama.br




                         O barão dizia estas coisas rindo, mas com os olhos afogados em pranto; a
                  mulher, chorando francamente, aproximou-se e uniu os seus lábios trêmulos aos
                  lábios murchos do marido.


                         – Vai descansar! – disse-lhe ele, afagando-a.

                         Ela saiu; ele limpou os olhos, esteve algum tempo a pensar em coisas
                  distantes; depois, com um suspiro, voltou ao seu catálogo: – 325...
                         Os dias passavam lentamente para os dois velhos.
                         A baronesa não dormia; tinha ao levantar-se o rosto pálido e os olhos
                  vermelhos.
                         O barão entristecia-se por não lhe saber dar remédio. Que fazer? Deixá-la
                  finar-se... e penar com ela. À proporção que as visitas da filha se prolongavam nas
                  Laranjeiras, Argemiro, ocupadíssimo em novas causas, deixava de aparecer na
                  chácara.
                         Esse afastamento era também motivo de censura e tristeza.
                         "O tempo leva tudo consigo, menos a saudade das mães pelos filhos mortos";
                  pensava a baronesa em silêncio, junto à janela, olhando vagamente para o campo
                  pálido, cortado pelas linhas negras das altas e ramalhudas mangueiras, sob cuja
                  sombra Maria correra em menina, entre a polvilhação de oiro da cabeleira desatada,
                  ou cismara, em mulher, aquelas doces cismas que a idealizavam tanto.
                         Parecia-lhe que, se procurasse bem, encontraria na terra as pegadas
                  mimosas da filha e que seria ingratidão abandonar aquele lugar em que ela vivera a
                  doce vida da criança e da moça... Em vão o materialismo do marido lhe afirmava que
                  o corpo branco da pobrezinha apodrecera como um lírio cortado, no fundo negro da
                  cova, e que já dele não existia senão um feixe de ossos, tão pequenos, que
                  caberiam todos no seu cofre de lembranças!
                         Em vão o padre Assunção lhe dizia que a alma bondosa da sua santa estava
                  no céu, longe de tudo e de todos, voltada como uma açucena para os pés do
                  Senhor! O que ela sentia é que sob a roupagem fluídica, a sua Maria estava a seu
                  lado, ora sentada sobre os seus joelhos, como quando tinha dez anos, ora seguindo
                  com o olhar ciumento o Argemiro, como nos tempos de casada; e que existia, que
                  tinha o seu lugar na terra!
                         O sol desmaiava; as mangueiras com a tarde faziam-se mais negras. Um
                  sabiá cantava, outro mais longe respondia, e a baronesa, dorida, persuadia-se de
                  que a melancolia mais amarga é a dos velhos, porque não têm a suavizá-la nem o
                  mais tênue raio de esperança!
                         Às vezes Glória, entrando bruscamente na sala, quebrava-lhe o devaneio.
                  Morena, forte, com os cabelos pretos cobrindo-lhe as orelhas em ondas acentuadas,
                  ela afastava a imagem loira e fidalga da mãe para o fundo esfumado do sonho; e,
                  palpitante de vida e de força, vinha lembrar à velha que só se devia consumir por
                  ela.


                         – De onde vens? Como te sujaste... trazes palhas no cabelo... Olha o vestido
                  rasgado!
                         – Quando pulei a cerca...
                         – Pulaste a cerca! muito bonito! Então uma menina pula cercas?!
                         – Foi para entrar na horta...
                         – Vem cá... deixa-me abotoar-te... ora... ora...


                                                                                                          84
   80   81   82   83   84   85   86   87   88   89   90