Page 76 - 2M A INTRUSA
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                         – Tal qual!

                         O relógio do escritório marcava seis horas quando o Dr. Teles e o padre
                  Assunção entraram em casa de Argemiro. Teles resplandecia. Tinha falado nessa
                  quarta-feira na Câmara. Via-se-lhe na cara, nua de pelos, a vaidade, e todo o corpo
                  emproado num terno de sobrecasaca cor de avelã, parecia empertigar-se com mais
                  satisfação. De vez em quando, ele olhava com um sorrisinho para as unhas
                  reluzentes, como se relesse nelas o seu discurso famoso e sensacional...
                         Assunção vinha triste, com um ar fatigado, que mal dissimulava, dizendo-se
                  amolecido por uma grande caminhada a pé. Enquanto os outros, com o cálice de
                  vermute na mão, discutiam o último escândalo da Câmara, ele, recostado no divã,
                  levantou o olhar para o retrato de Maria, suspenso na parede em frente, com o seu
                  doce perfil de loura a esvair-se já no embranquecimento das tintas.
                         A beleza... a bondade... a juventude... tudo com o tempo se esvai, como o
                  fumo delével. Na curta passagem da vida, confundem-se à distância todos os traços,
                  os que marcam os caminhos da alegria, como os que vêm da tristeza... A saudade
                  do passado é o nevoeiro que envolve tudo na mesma claridade enganadora e
                  opaca...


                  Capítulo XIII

                         A noite estava escura. Alice levantou a gola do casaco e, puxando o véuzinho
                  até a queixo, desatou a andar em direção ao largo do Machado, sem paciência de
                  esperar o bonde à porta de casa.
                         Atrás dela, à curta distância, Feliciano não lhe tirava os olhos de cima,
                  cosendo às paredes o seu corpo esguio. A sombra, protetora de segredos,
                  confundia-se com a cor do seu rosto, esvaindo-lhe a imagem. Os tacões da moça
                  batiam na calçada em pancadinhas miúdas e sonoras; os dele dir-se-iam forrados de
                  veludo.
                         A espionagem tem asas de morcego, teme a luz, mas espalma-se na treva
                  sem rumor nem receio. Seu elemento é o mistério. O desejo do mal é silencioso. Oh,
                  se ele pudesse estender as unhas afiadas e fazer sangrar na escuridão a carne
                  branca daquela mulher!
                         Não fora ela quem o desprestigiara diante dos outros que ele dominara
                  antigamente como senhor? Todas as suas fraquezas, os seus crimezinhos de
                  infidelidade não tinham sido farejados e descobertos por essa criatura imperativa e
                  doce a um tempo? Nem uma palavra lhe saíra dos lábios, mas a verdade salta pelos
                  olhos quando a não deixam sair pela boca.
                         Ela sabia tudo. Tratava-o como um inferior, uma máquina de serviço, sempre
                  necessitada de direção.Não fora para isso que ele aprendera a ler na mesma cartilha
                  da sua antiga Iaiá!
                         Revoltado contra a natureza que o fizera negro, odiava o branco com o ódio
                  da inveja, que é o mais perene. Criminava Deus pela diferença das raças. Um ente
                  misericordioso não deveria ter feito de dois homens iguais dois seres
                  dessemelhantes!
                         Ah, se ele pudesse despir-se daquela pele abominável, mesmo que a fogo
                  lento, ou a afiados gumes de navalha, correria a desfazer-se dela com alegria. Mas a
                  abominação era irremediável. O interminável cilício duraria até que, no fundo da
                  cova, o verme pusesse a nu a sua ossada branca...
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