Page 74 - 2M A INTRUSA
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o. Cheirava a flor de fruta. Era um romance inglês. A minha governanta lia inglês! Foi
a sua primeira revelação. Depus o livro fechado sobre a mesa e vi o nome dela
escrito na capa. Para simpatizar com ela bastaria, talvez, isso; – para respeitá-la, o
modo por que tem sabido corrigir Glória das suas brutalidades de menina
malcriada...
– Como terminará tudo isto!
– Não terminará. Enquanto ela se sujeitar a este papel, eu ficarei muito bem
naquele em que estou. Se não... ir-se-á embora e tratarei de arranjar outra pelo
mesmo processo escandaloso, mas cômodo.
– Hum!...
– Afinal, talvez seja fácil...
– É impossível, digo-te eu! Essa mulher deve ter vindo acossada por uma
grande miséria! Lembra-me uma garça marítima que vi caçar na floresta do alto da
Serra! Tinha fugido à tempestade sozinha, branca, até aquelas paragens
desconhecidas e inóspitas. Pobre ave do mar!
– Mataram-na?
– E empalharam-na.
– Esperemos que esta não tenha a mesma sorte.
– Pelos desejos da tua sogra!
– Que ciumenta! como se pudesse haver alguém neste mundo que me
fizesse esquecer Maria!
– Há...
– O tempo?
Caldas não respondeu e sorriu.
E depois:
– Dizem que fama sem proveito faz mal ao peito. A tua governanta morrerá
tísica!
– Coitada... defende-a quando se te oferecer ensejo. Eu sou tão mau que a
sacrifico ao meu bem estar. E à minha imperfeição! Ignominioso! não achas?
– Humano. Ela veio ao encontro desse desastre. Tinha obrigação de prevê-lo.
Talvez o desejasse... Que somos nós todos? Poços de mistério! Que pode esperar
uma mulher que se aluga – por mais que te repugne a expressão, ela é corrente
aqui – para tomar conta e governar a casa de um homem só? O teu egoísmo
explica-se; tu pagas esse direito; agora, a sua sujeição, meu Argemiro, é que não
tem duas faces por onde possa ser encarada. Para mim, ela é, única e
simplesmente, uma especuladora.
– Não digas isso!
– Por que te indignas?
– Não...
– Acaba...
– Sem ter posto os olhos nunca em cima desta pobre moça, parece-me que a
conheço já há muito... Ela fiava-se naturalmente na sua altivez para defender-se de
qualquer assalto. Por que não acreditar que tenha, como tu disseste, vindo
acossada pela miséria, estonteadamente, até a minha porta? A única impressão que
tive dela, no dia em que a contratei, foi a de lhe ver as botinas esfoladas... Não lhe vi
o rosto, que o trazia velado; mas vi-lhe os pés. Caprichosa como revela ser em tudo,
bem vês que só por grande necessidade se sujeitaria a andar assim...
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