Page 72 - 2M A INTRUSA
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                         – Estou calado! Mas é cada vez mais adorável, o Assunção! Para mim, ele
                  tem lá dentro coisa oculta, obra de feitiçaria, que nem a minha sagacidade nem
                  talvez a tua intimidade pode adivinhar... Não te parece?
                         – Não. Nele há só o amor do céu... mais nada...
                         – Estás seráfico! Pois tu acreditas que, hoje em dia, um homem válido se faça
                  padre só por amor do céu? Qual, histórias! Eles escolhem a vida clerical como
                  poderiam escolher outra qualquer acomodada ao seu egoísmo e à sua habilidade...
                  Os inteligentes pensam tanto na vida eterna como eu ou tu, mas fazem nesta o que
                  podem para chegarem a bispos... Tenho um medo deles que me pelo... O nosso
                  Assunção é um exemplar único, faz-me lembrar um desses sacerdotes virtuosos dos
                  romances anticlericais, com que o autor adula o sentimento dos leitores piegas... O
                  que me agrada sobretudo no Assunção é que ele é mais amigo da humanidade que
                  dos santos; e gasta-se mais em esmolas que em jejuns... Não vês o recato em que
                  ele envolve as suas ações e as suas idéias? Anula a sua personalidade, como para
                  dar vulto ao fato e pôr em toda a evidência a personalidade alheia... A palavra eu
                  parece que lhe morre na garganta antes de lhe chegar à boca, e todavia ele é
                  inteligente. Já me tenho servido da sua biblioteca; é opulenta em obras clássicas
                  portuguesas. Se fosse escritor, seria um defensor da língua!
                         – O valor do Assunção, para mim, que o conheço desde bem moço, está
                  principalmente no coração. Ele é bom. Às vezes penso que ele estaria melhor num
                  lugarejo qualquer do interior, ensinando crianças e animando a pobreza a suportar a
                  vida, do que no Rio de Janeiro. Dizes bem. Ele não é lutador nem ambicioso; é um
                  resignado e um meigo. se eu tivesse um irmão não lhe quereria mais. Entretanto, o
                  Assunção nunca me confiou o seu segredo, que ele guardou sempre com tamanho
                  recato que tive escrúpulo em interrogá-lo. Por que não havemos de acreditar na
                  vocação? Ele sempre foi um místico. A mãe, uma senhora adorável, fez tudo para
                  desviá-lo do sacerdócio, batalhou como uma heroína; mas ele dizia-se chamado por
                  Deus, e Deus venceu a vontade materna. Fomos sempre amigos. Ele vivia com a
                  sua ilusão, eu com o meu pecado; e com tão opostas idéias nunca ofendemos a
                  nossa amizade. É verdade que ele me contagiou um pouco do seu sentimentalismo.

                         É mais forte do que eu, que não lhe transmiti nem uma sombra da minha
                  personalidade...

                         – Não lhe conheceste nem uma paixão?
                         – A dos livros, de que falaste há pouco; e essa mesma há alguns anos é que
                  me dá a impressão de ser a tábua flutuante do seu naufrágio!
                         – E tua filha?
                         – Sim, ele adora minha filha!
                         – Ora, pois, já tem com que se entreter. Dá-me outro charuto. São magníficos
                  os teus charutos... Realmente, está-se bem aqui. Estou vai não vai a raptar-te a tua
                  Alice!
                         – Psiu! fala baixo...
                         – Receias que ela esteja atrás da porta?
                         – Quem sabe?...
                         – Não duvides! Uma governanta de casa de um viúvo só, vinda por anúncio
                  de jornal... deve ter ao menos um defeitozinho, e olha que o da curiosidade é quase
                  virtuoso... Antes do que me disse a Pedrosa, eu supus que vocês estivessem a
                  mangar comigo, e que a tua mulherzinha fosse por aí uma matrona gorda, de
                  cabelos pintados e verruga no queixo. Mas a Pedrosa, mais afortunada do que eu,

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