Page 73 - 2M A INTRUSA
P. 73

www.nead.unama.br




                  esbarrou de cara com ela, e pela raiva com que lhe ficou, deduzi que a rapariga
                  deve ser bonita...
                         – A Pedrosa disse-te isso?
                         – Disse que era feia.
                         – Então!
                         – Por isso mesmo fiquei sabendo que o não é. As mulheres, nesse assunto,
                  são sempre contraditórias. Para experimentá-la, exclamei com ar de desgosto:
                         – Oh! minha senhora, uma velha! E ela logo, indignada: "Velha?! moça! E
                  toda presunçosa, com a sua gravatinha azul!"
                         – Pensou, talvez, que a gravata fosse minha!
                         – E daí?!... Ó diabo, corre aquele reposteiro!
                         – Fala à vontade. Ninguém nos ouve.
                         – Que confiança!
                         – Absoluta.
                         – É extraordinário!
                         – É extraordinário. Desde que esta mulher entrou em minha casa eu sou outro
                  homem, muito mais tranqüilo e muito mais feliz. Nunca a vejo, mas sinto-a; a sua
                  alma de moça como que enche estas salas vazias de juventude e de alegria.
                  Sozinho com os criados, eu abandonava-me. Ia às vezes para o almoço de chambre
                  e de chinelos; passava pelo jardim sem olhar para os canteiros; e, no escrúpulo de
                  alterar as coisas da antiga ordem em que as dispusera minha mulher, deixava-as
                  envelhecer monotonamente, sem uma reforma que as alegrasse. Eu estava mofado,
                  tinha bolor na alma. Botava pontas de cigarros pela casa... estava, enfim, de um
                  desmazelo torpe! Depois, sentindo a influência dela, percebendo-lhe os gostos finos,
                  que em tudo se demonstravam, comecei a exigir de mim hábitos mais corteses e a
                  tratar a minha pessoa com mais consideração e maior carinho. A idéia de que ela
                  poderia ver-me por uma fresta da veneziana, quando eu ia para a rua, fazia-me
                  prestar atenção ao meu jardim e observar o seu progresso e melhor tratamento...
                  Almoçando, eu via na cadeira vazia em frente ao meu lugar, a minha governanta a
                  observar por que maneira eu levava o garfo à boca ou enchia o copo de vinho.
                  Retomei insensivelmente os meus atos de elegância, prejudicados com o abandono
                  em que por tantos anos vivi nesta casa, dirigida por um preto ladino. Entrando da
                  rua, nunca surpreendi a minha governanta, como aconteceu à Pedrosa; mas ela
                  vinha e vem ao meu encontro num aroma fresco de pomar florido, e que eu nunca
                  sentira antes da sua estada nesta casa. Tu o disseste há bocado: "Está-se bem
                  aqui!". A pouco e pouco as coisas mudas que me rodeavam, e que só sugeriam
                  idéias saudosas e melancólicas, foram se despindo desse aspecto doentio e talvez
                  tolo e animando-se em novos polimentos ou cores risonhas, que me davam saúde.
                  Cadeiras velhas, esgarçadas no estofo, atiradas para uma alcova do porão, subiram
                  lustradas e estofadas de novo para os cantos desguarnecidos das salas, onde o
                  conforto é muito maior do que foi sempre! Repara para o soalho: um espelho! Vê as
                  cortinas: resplandecentes! Em um meio que se asseava cada vez com maior primor,
                  eu tive de corrigir-me dos defeitos que ia adquirindo na solidão e no desmazelo...
                  Estou só, sentindo que sou o alvo da atenção e da magnanimidade de alguém...
                  Esta carícia sem mãos sabe-me bem; tanto mais que me dispensa o trabalho do
                  agradecimento! Se não a queria ver antes, por prudência, não a quero ver agora, por
                  egoísmo, para não desfazer esta ilusão agradável e esquisita, mas bem sincera.
                  Uma noite, entrando inesperadamente em casa, percebi que alguém fugia
                  precipitadamente da sala. Não pude vencer a minha curiosidade; entrei. Junto à
                  janela do jardim, perto de uma cadeira de balanço, encontrei um livro aberto. Ergui-

                                                                                                          72
   68   69   70   71   72   73   74   75   76   77   78