Page 70 - 2M A INTRUSA
P. 70
www.nead.unama.br
alegria para ir buscar o chapéu e o sobretudo ao pavilhão japonês e sair para a rua
sem ser visto.
O pavilhão estava a meia luz. Nas paredes forradas de esteirinha as
japonesas dos caquemonos requebravam-se entre os cetins das suas kobaias e o
ouro das borboletas e dos crisântemos dos seus penteados... Carinhas de marfim,
graciosamente pendidas sobre os ombrinhos estreitos, pareciam oferecer as cerejas
das boquinhas para a guloseima de um beijo. Aves e insetos delicados, de asinhas
transparentes, voejavam entre os galhos de pessegueiro em flor, nos panos
cinzentos dos biombos. No meio do pavilhão, um enorme vaso bojudo, fabricado em
Kioto, sustinha um profuso ramo de camélias brancas, grandes e silenciosas...
Os passos de Argemiro morreram ao entrar no pavilhão, abafados na
esteirinha, e ele dirigira-se para o fundo, onde deixara o agasalho, quando Sinhá
saiu de trás do biombo e veio ao seu encontro, trazendo-lhe ela mesma nas mãos a
capa e o chapéu.
Argemiro não pôde conter um movimento de surpresa. Ela, muito séria, com
uma gravidade que a tornava linda, estendeu para ele o agasalho e disse com um fio
de voz suave e triste:
– Agradeço a sua resolução... vá-se embora e peço-lhe que não volte, senão
quando souber que eu já não estou aqui... Para o senhor isso não será um sacrifício;
e quanto a nós... a saudade que nos deixar será atenuada pela certeza do seu
respeito e da sua estima...
Toda de branco, naquela meia luz em que bailavam insetos e sorriam
japonesas, a figura grave da moça ressuscitava uma visão de sonho que perturbava
o espírito de Argemiro. Ele curvou-se, beijou-lhe as pontas dos dedos gelados e,
com a voz engasgada pela comoção, afirmou:
– Eu não a tinha compreendido, distanciado como estou da sua idade e da
sua perfeição... Consinta que eu volte no dia em que o seu coração de menina tiver
encontrado um outro coração moço e digno dele! Bastará então uma palavra sua:
venha!
Sinhá não respondeu. Argemiro aceitou o agasalho das mãos dela e saiu
comovido, tonto. Fora, as estrelas palpitavam luminosamente no fundo aveludado do
céu. O ar cheirava a flores. E o viúvo caminhava a pé, sozinho, pensando nas
surpresas desta vida de civilização, e revendo a palidez da moça, o seu olhar
sincero e transparente. Não teria ele repelido a felicidade?
Entretanto, vendo-o sair, Sinhá recolheu-se para trás do biombo, chorando
devagarinho, devagarinho, em segredo.
Capítulo XII
"Bem dizem os romancistas que os romances se fazem por si. Criada a
personagem, posta no meio em que terá de agir, ela caminhará por seus pés até o
ponto final do último capítulo.
Acontece, por isso, que o autor tem, às vezes, verdadeiras surpresas, como
se todos os atos dos seus heróis não fossem obra sua! Concebida a idéia
fundamental do livro, está criado o sopro de vida que o animará. A dificuldade está
69