Page 64 - 2M A INTRUSA
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                  referências tão verdadeiras... e dera o passo repugnante de induzir o criado à
                  espionagem!


                         – No dia em que eu receber a carta, revelarei tudo a meu marido, – decidia
                  ela – e se nada receber... não tornarei a voltar à D. Alexandrina... Que poderá
                  aquela fraca criatura contra as disposições do destino? Velha tonta que eu sou!


                         À hora do jantar, quando a avó de Glória apareceu na sala, notou toda a
                  gente que ela estava pálida, com olheiras pisadas e um sorriso forçado que não
                  conseguia levantar-lhe os cantos da boca fatigada. A carne pálida e flácida do
                  pescoço descaía-lhe sobre as rendas da gravata segura por um broche de esmalte
                  representando a cabeça loura de Maria, cópia do seu último retrato, e em que o
                  doce perfil da moça parecia já velado por uma sombra de infinita tristeza. Os cabelos
                  brancos, presos à nuca por um pente de tartaruga, iluminavam de reflexos de prata a
                  sua fronte amargurada, em que o pensamento parecia perder-se no labirinto das
                  rugas.
                         Argemiro correu a abraçá-la e sentiu-a fria ao beijo com que correspondeu ao
                  seu. Acudiram logo todos a rodeá-la de cumprimentos.
                         Adolfo Caldas fora arrebanhado na rua, pedia desculpa para o seu veston de
                  trabalho, pondo nas mãos bondosas da velha um ramo de violetas, que ela prendeu
                  junto ao broche da filha.
                         Dr. Teles beijou-lhe os dedos curtos, de unhas sem brilho; e o padre
                  Assunção, lendo-lhe no rosto uma agonia estranha, fixou-lhe penetrantemente os
                  olhos, que se turvaram, como a água clara de uma lagoa a que uma pedra revolve o
                  fundo.
                         Glória avançou radiante, com os braços cheios de pacotes de bombons, de
                  livros bonitos e de rosas. Também a D. Alice lhe mandara um presente pelo padre
                  Assunção! Era um vasinho para flores, de cristal branco, mimosamente lavrado.
                         Glória entregou-o à avó, gabando-lhe a delicadeza; mas, no instante em que
                  declarou o nome de Alice, os dedos da velha abriram-se trêmulos, e o lindo vaso fez-
                  se em pedaços no soalho.
                         Argemiro e o padre Assunção trocaram um olhar rápido. Glória exclamou,
                  num grito lamentoso:

                         – O meu vasinho! Ah! vovó!
                         – Perdoa, filha... eu te darei outro igual, perfeitamente igual... não sei o que
                  tenho nas mãos. Que sensaboria!
                         – Realmente, – censurou o barão, sem compreender – não sei como se pode
                  deixar cair assim um objeto desses!... Foi pena, porque era um bonito veneziano...


                         Glória olhava para os destroços, com os olhos marejados, e começava outra
                  lamentação, quando o pai a chamou para o terraço e a aconselhou a se mostrar
                  resignada e alegre. Empurrou-a para a sala.
                         Caldas foi ter com eles, e, rindo-lhe na cara:

                         – Han! que te dizia eu, meu velho? Eis-te em pleno romance, já no capítulo
                  dos zelos! Para quem está de fora, o caso é bonito; chega mesmo a ser
                  interessante... Ça marche!




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