Page 50 - 2M A INTRUSA
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                  Jardim Botânico, outras aos asilos ou a novos bairros e diferentes jardins, trazendo
                  sempre impressões bem definidas e em que se percebia uma direção cuidadosa e
                  inteligente. A pouco e pouco a criança ia se tornando mais observadora e mais
                  piedosa. O padre Assunção, que ia buscá-la sempre ao ponto indicado por Alice,
                  sentia arraigar-se-lhe a idéia de que esses passeios através da cidade desenvolviam
                  melhor o espírito e o coração de Maria do que o mais volumoso livro de moral.
                         Se vinha de visitar um asilo de velhos, com que meiguice Glória falava dos
                  seus cabelos brancos, dos seus passos trêmulos e do seu triste sorriso desdentado!
                  Se vinha da Tijuca, quantas exclamações de entusiasmo para as belas árvores
                  poderosas e as quedas de água da cascata e as lindas flores silvestres! Se vinha do
                  mar, que indagações curiosas sobre os navios e lanchas, e quantos elogios para as
                  largas paisagens azuis, varridas de ar fresco! A vida dos marinheiros, com os seus
                  perigos, a dos pescadores com os seus atrevimentos, atraíam a sua simpatia e a
                  sua piedade. Ia vendo que o número dos sacrificados é muito maior no mundo do
                  que o dos felizes, e assim se tornava menos selvagem e mais humana.
                         Ora, o padre Assunção sabia bem que tudo aquilo era reflexo e sugestão de
                  Alice. Maria era inteligente, e as suas qualidades morais, ainda informes,
                  propendiam mais para a maldade que para o bem. Aquela metamorfose era, pois,
                  toda, obra da moça, que parecia acolher a companhia da criança, como um presente
                  caído do céu... Realmente, ela estava tão só!
                         O ciúme da baronesa aumentava a cada novo triunfo de Alice, que lhe
                  disputava a neta com furor. Sofria calada, não ousando queixar-se nem ao marido
                  nem ao padre Assunção, que ambos glorificavam com entusiasmo a obra da moça.
                  Fechada na sua chácara, à sombra das mais lindas mangueiras dos subúrbios, ela
                  maldizia a hora em que o genro chamara para casa aquela aventureira, cujo
                  propósito percebia a léguas. O Feliciano não voltara, e ela tinha pena... só ele lhe
                  poderia dizer toda a verdade, por não estar enfeitiçado pela bruxa e por conhecê-la
                  melhor que os outros, visto estar sempre na sua convivência...
                         Sua intenção estava feita. Havia de cumprir-se. Quando o negro, por acaso,
                  aparecesse ali, ela puxar-lhe-ia pela língua, de modo que ninguém mais o ouvisse
                  senão ela... ah! e então, nada ficaria em meio!
                         Com as idas de Maria à cidade, rareavam as visitas de Argemiro à chácara;
                  esse desgosto vinculava as suspeitas da baronesa; mas quando o genro se
                  lembrava de ir vê-la, achava jeito de falar na filha a todo o instante, numa obstinação
                  dolorosa e impertinente.


                         – Você tem ido visitar o túmulo de Maria? Mandou reproduzir os retratos de
                  Maria? – e assim o nome da filha saía-lhe constantemente da boca, como a querer
                  impô-lo à lembrança de todos.


                         Os retratos de Maria, desde o de colo, de quatro meses, até o último, em que
                  o seu perfil delicado se voltava para o céu, como a interrogá-lo, alinhavam-se sobre
                  o guéridon, sobre o piano, na sala de visitas, na saleta de trabalho e na sala de
                  jantar, repetindo-se por toda a casa, para que nunca os olhos maternos deixassem
                  de o encontrar... Ela vivia assim perpetuamente arrastada pela saudade, nunca
                  conformada, e criadora da ilusão!
                         Argemiro identificara-se tanto com a sogra nesse sentimento, que para ele era
                  como se Maria estivesse longe, muito longe, mas estivesse, e houvesse de voltar um
                  dia. Era uma certeza tida pelo coração e não compartilhada pelo cérebro, mas que,
                  sendo terrível, não deixava de o consolar...

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