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todos eles comentam a  crise,  quando  não  tratam estreitamente dos seus negócios.

                        Passa  pelas portas da venda uma singular  rapariga. É branca  e de boas feições.
                  Notei-lhe  o cuidado em ter sempre um vestido por dia, observando ao mesmo tempo
                  que  eles  eram  feitos  de  velhas  roupas.  Todas as manhãs, ela vai não sei onde e traz
                  habitualmente na mão direita um bouquet feito de miseráveis flores silvestres. Perguntei
                  ao dono quem era. Uma vagabunda, disse-me ele.

                        "Tutu" está sempre ocupado com a moléstia dos seus muares.
                  O "Garoto" está mancando de uma perna e a "Jupira" puxa de um dos quartos. O
                  "Seu" Antônio do Açougue, assim chamado porque já possuiu um muito tempo, conta
                  a sua vida, as suas perdas de dinheiro, e o desgosto de não ter mais açougue. Não se
                  conforma absolutamente com esse neg6cio de vender leite; o seu destino é talhar
                  carne.

                        Outro que lá vai é o Manel Capineiro. Mora na redondeza e a sua vida se faz
                  no capinzal,  em cujo seio  vive,  a  vigiá-lo  dia  e  noite  dos  ladrões,  pois os  há,  mesmo
                  de  feixes  de  capim.  O  "Capineiro"  colhe  o capim à tarde, enche as carroças; e, pela
                  madrugada, sai com estas a entregá-lo à  freguesia. Um companheiro fica na choupana
                  no meio do vasto capinzal a vigiá-lo, e ele vai carreando uma das carroças, tocando com
                  o guião de leve os seus dois bois - "Estrela" e "Moreno".

                        Manel os ama tenazmente e evita o mais possível feri-los com a farpa  que  lhes
                  dá  a  direção requerida.

                        Manel Capineiro é português e não esconde as saudades que tem do seu Portugal,
                  do  seu  caldo  de unto,  das  suas  festanças  aldeãs,  das  suas  lutas  a  varapau;  mas  se
                  conforma com a vida atual e mesmo não se queixa das cobras que abundam no capinzal.

                        - Ai! As cobras!... Ontem dei com uma, mas matei-a .

                        Está aí um estrangeiro que não implica com os nossos ofídios o que deve agradar
                  aos nossos compatriotas, que se indignam com essa implicância.

                        Ele e os bois vivem em verdadeira comunhão. Os bois são negros, de grandes
                  chifres,  tendo  o "Estrela" uma mancha branca na testa, que lhe deu o nome.

                        Nas horas do ócio, Manel vem à venda conversar, mas logo que  olha o relógio e
                  vê que é hora da ração, abandona tudo e vai ao encontro daquelas suas duas criaturas,
                  que tão abnegadamente lhe ajudam a viver.


                        Os seus carrapatos lhe dão cuidado; as suas "manqueiras" também. Não sei bem
                  a que propósito me disse um dia:

                        - Senhor fulano, se não fosse eles, eu não saberia como iria viver. Eles são o meu
                          pão.
                        Imaginem que desastre não foi na sua vida, a perda dos seus dois animais de tiro.
                  Ela se verificou em condições bem lamentáveis. Manel Capineiro saiu de madrugada,
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