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Manel Capineiro
QUEM CONHECE a Estrada Real de Santa Cruz? Pouca gente do Rio de Janeiro.
Nós todos vivemos tão presos à avenida, tão adstritos à Rua do Ouvidor, que pouco ou
nada sabemos desse nosso vasto Rio, a não ser as coisas clássicas da Tijuca, da Gávea e
do Corcovado.
Um nome tão sincero, tão altissonante, batiza, entretanto, uma pobre azinhaga,
aqui mais larga, ali mais estreita, povoada, a espaços, de pobres casas de gente pobre, às
vezes, uma chácara mais assim ali. mas tendo ela em todo o seu trajeto até Cascadura e
mesmo além, um forte aspecto de tristeza, de pobreza e mesmo de miséria. Falta-lhe
um debrum de verdura, de árvores, de jardins. O carvoeiro e o lenhador de há muito
tiraram os restos de matas que deviam bordá-la; e, hoje, é com alegria que se vê, de onde
em onde, algumas mangueiras majestosas a quebrar a monotonia, a esterilidade
decorativa de imensos capinzais sem limites.
Essa estrada real, estrada de rei, é atualmente uma estrada de pobres; e as velhas
casas de fazenda, ao alto das meias-laranjas, não escaparam ao retalho para casas de
cômodos.
Eu a vejo todo dia de manhã, ao sair de casa e é minha admiração apreciar a
intensidade de sua vida, a prestança do carvoeiro, em servir a minha vasta cidade.
São carvoeiros com as suas carroças pejadas que passam; são os carros de bois
cheios de capim que vão vencendo os atoleiros e os "caldeirões", as tropas e essa espécie
de vagabundos rurais que fogem à rua urbana com horror.
Vejo-a no Capão do Bispo, na sua desolação e no seu trabalho; mas vejo
também dali os Órgãos azuis, dos quais toda a hora se espera que ergam aos céus um
longo e acendrado hino de louvor e de glória.
Como se fosse mesmo uma estrada de lugares afastados, ela tem também seus
"pousos". O trajeto dos capineiros, dos carvoeiros, dos tropeiros é longo e pede
descanso e boas "pingas" pelo caminho.
Ali no "Capão", há o armazém "Duas Américas" em que os transeuntes param,
conversam e bebem.
Pára ali o "Tutu", um carvoeiro das bandas de Irajá, mulato quase preto, ativo, que
aceita e endossa letras sem saber ler nem escrever. É um espécime do que podemos dar
de trabalho, de iniciativa e de vigor. Não há dia em que ele não desça com a sua
carroça carregada de carvão e não há dia em que ele não volte com ela, carregada de
alfafa, de farelo, de milho, para os seus muares.
Também vem ter ao armazém o Senhor Antônio do Açougue, um ilhéu falador,
bondoso, cuja maior parte da vida se ocupou em ser carniceiro. Lá se encontra também
o "Parafuso", um preto, domador de cavalos e alveitar estimado. Todos eles discutem,