Page 7 - 2M A INTRUSA
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Houve uma pequena pausa no jogo; o Feliciano entrou com os cálices de
Chartreuse. No abrir da porta ouviu-se o barulho da chuva batendo com força nos
ladrilhos do terraço, e um arrepio de frio fez voltar-se o Dr. Argemiro, que estava de
costas para a entrada.
– Ó Argemiro, onde arranjaste tu este Feliciano? – perguntou Caldas, mirando
o copeiro, um negro de trinta e poucos anos, esgrouviado e bem vestido.
– Na família da minha sogra... é filho da ama de minha mulher.
– Se não fosse relíquia de família, pedia-lo para mim.
Feliciano, servindo a todos como se não tivesse ouvido coisa nenhuma,
substituiu por outros os cinzeiros já repletos e tornou a sair, silenciosamente.
– Se me não engano, – observou o Armindo Teles – vi-o outro dia em casa de
Lolota...
– Ah! também você?...
– Que! ir à casa da Lolota? Mas toda a gente vai à casa da Lolota!
– Até o Feliciano... murmurou Caldas.
– Não! o Feliciano levava um recado. Ia com uma carta minha, corrigiu
Argemiro.
– Por isso ela discutiu leis com tanto apuro! Parabéns. É uma mulher
estonteadora...
– Não sei, a minha carta era acerca de negócios; ela é minha cliente.
– Homem puro, que nem sabe se as suas clientes são ou não são bonitas! Eu
confesso-me pecador impenitente: quando vejo uma saia levanto logo os olhos para
ver se o rosto da dona é feiticeiro! Tape os ouvidos, padre Assunção!
O padre sorriu e não desviou os olhos da leitura.
– Pecar ainda é e será a coisa melhor da vida, – continuou o Armindo –
pecado de amor, está claro. Ah, e neste Rio de Janeiro, por melhor que seja a
vontade de resistir, ninguém foge à tentação! Você conhece o Dr. Aguiar?
– O da Caieira?
– Esse mesmo. Pois quando pretende alguma coisa da Câmara ou dos
ministros, manda a mulher às secretarias ou à casa dos deputados. A mim procurou-
me ela um dia no hotel, e como o negócio era reservado, tive de falar-lhe no meu
quarto. O salão estava cheio. Ia linda!
– E?...
– O Aguiar entrou numa centena de contos; aliás, a pretensão era justa;
todavia, se a mulher fosse feia, não digo isto por minha parte, creio que ele não
arranjaria nada.
O caso não dependia de mim, mas de quem "mais caso faz da formosura
alheia"!
Armindo interrompeu o assunto para sorver um gole de Chartreuse.
O padre Assunção, talvez para desviar o assunto mal encaminhado, por achar
a propósito o trecho ou para fazê-lo notar a Adolfo Caldas, leu alto uma frase:
"... um pecado chama outro pecado, e este outro vem logo acompanhado até
criar devassidão e ficarem em estado de se darem por sem remédio. Miserabilíssimo
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