Page 6 - 2M A INTRUSA
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Armindo Teles respondeu:
– Vocês confundem-me como Araújo Braga... que trouxe da pasta a prática
da mastigação e leva mesmo a imprudência a ponto de dizer, como disse ontem à
porta do Watson, à minha vista: – eu hoje só rôo subsídios e clientes.
– Esse tem, ao menos, o mérito da franqueza. A mim então só me aparecem
causas péssimas, clientes já esfoladas, em osso. Se eu não tivesse alguns bens, iria
esmolar na esquina! – declarou Argemiro.
O jogo chegara a um ponto que requeria a atenção absoluta dos jogadores.
Ficaram largo tempo silenciosos, olhos fitos nas cartas, só entreabrindo a boca para
a passagem das expressões obrigadas do pôquer.
Padre Assunção continuava a sua leitura, de pé, com o ombro encostado ao
ângulo da estante. A batina muito escorrida desenhava-lhe o corpo esguio,
descendo rente à moldura do móvel, confundindo-se com ele na sombra do
aposento.
Os três jogadores eram de bem diferente aspecto. Em contraste ao todo
severo do dono da casa, o deputado Armindo Teles alegrava a sala com os tons
claros da sua roupa alvadia e da sua gravata escocesa picada por um rubi
fulgurante.
Representante do Paraná, que o tinha como um político hábil, presumia
conhecer as coisas e os homens do Rio de Janeiro como os da sua terra, onde a
família carpia saudades da sua pessoa airosa e bem tratada. Maleável, imprimia ao
seu jornal de Curitiba as cambiantes políticas do seu partido e a vontade soberana
do seu chefe, e desta arte equilibrava-se na invejada posição de representante da
nação. Claro, louro, sem barba, que raspava escrupulosamente, ele aparentava
menos idade do que a que tinha realmente. Falava com sossego, num agradável
timbre de voz. Às vezes mesmo Caldas caçoava:
– Na Câmara, quando o Armindo fala, não lhe escutam as palavras; ouvem-
lhe a voz. C’est la voix d’or do Congresso!
Assim como a voz ele tinha macio o gesto, que parecia obedecer a um
estudo, a que por certo não se aplicara nunca... As mãos, pequenas, mostravam os
anéis de preço sem se desviarem muito do peito, sempre resguardado por linhos
claros e fatos corretíssimos.
Em frente dele, Adolfo Caldas, gordo e calvo, com um eterno charuto entalado
entre os beiços carnudos, que o bigode castanho cobria, movia-se à vontade no seu
veston de pano preto, com um bom ar de despretensiosa superioridade.
Adolfo Caldas dizia-se rio-grandense, mas afirmavam alguns que ele era
nascido em Montevidéu, de família brasileira. Vivia desde os vinte anos no Rio de
Janeiro, sempre na boa roda de financeiros ilustres e ministros afamados, chegando-
se para as árvores de substanciosos frutos e boa sombra. Solteirão, intermediário de
bons negócios, permitia-se o luxo de uma viagem de longe em longe a Paris, cujos
museus de quadros conhecia de cor.
Tinha a paixão da pintura e lia bons livros portugueses, clássicos sobretudo.
Era com ele que o padre Assunção conversava às vezes sobre literatura antiga,
certo de que os bons livros espirituais, como os profanos, tinham a mesma
admiração no juízo competente daquele homem de tão esperta sagacidade.
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