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                  A Intrusa
                  de Júlia Lopes de Almeida





                  Capítulo I

                         – Que temporal!
                         – E um friozinho! Conhecem vocês nada mais gostoso do que ouvir-se o
                  barulho da chuva quando se está agasalhado? Eu estou me regalando...
                         – Sempre o mesmo egoísta! Como estás em tua casa... mas... desalmado,
                  lembra-te de nós! São quase horas de me ir recolhendo aos meus penastes. E ali o
                  padre Assunção, caso não fique pelo caminho, terá também que marchar um bom
                  pedaço a pé. Ao Teles, esse o bonde leva-o até o quarto de dormir! Nasceu
                  empelicado.


                         Por essa feia noite de chuva, conversavam em casa do advogado Argemiro
                  Cláudio, no Cosme Velho, o seu grande amigo padre Assunção, o deputado
                  Armindo Teles e o Adolfo Caldas, homem de quarenta anos, sem profissão
                  determinada, mas muito bem aceito nas rodas políticas e literárias, que freqüentava
                  assiduamente.
                         Tinham jantado tarde, fumavam agora na biblioteca de Argemiro, sentados à
                  mesa do pôquer.
                         Menos por virtude que por cansaço, padre Assunção não quisera tomar parte
                  no jogo e andava pela sala sacudindo o pano da batina a cada impulso das suas
                  largas passadas. Era alto, magro, anguloso, de uma cor pálida; e nas suas feições
                  acentuadas, em que melhor condiria o sarcasmo, havia uma tal expressão de
                  candura, que Adolfo Caldas costumava dizer:

                         – O riso do Assunção cheira a rosas brancas.


                         O Dr. Argemiro, advogado, conforme rezavam os diários do Rio – dos mais
                  distintos do nosso foro – jogava por jogar, sem vivo interesse, só para pretexto de
                  chamar os amigos à sua casa de viúvo e de lhe dar uma palpitação de alma que lhe
                  ia faltando...
                         "Ah! uma casa sem mulher, afirmava ele, é um túmulo com janelas: toda a
                  vida está lá fora..." E lembrar-se que aquilo havia de ser para sempre!
                         O Dr. Argemiro Cláudio de Menezes, descendente direto dos Iglésias de
                  Menezes, nobres de Portugal, cujo solar brasonado existe ainda, bem que arruinado,
                  naquele país, em terras limítrofes da Espanha, à beira de um rio espelhento e de
                  pinheirais perdidos, – era um homem ainda moço, robusto, de carnes sólidas e uns
                  olhos negros, em que talvez a raça árabe transparecesse ainda, adoçada pelo
                  cruzamento com a lusitana. A barba preta talhada rente ao rosto pálido, tinha já um
                  ou outro fio prateado, e o cabelo muito curto desenhava-lhe a cabeça redonda e
                  forte. Tinha as mãos pequenas, a atitude preguiçosa, em contradição à energia do
                  tipo. Viúvo a sete anos de uma formosa senhora, cujo retrato aparecia em todos os
                  cantos da casa, ele protestara não tornar a casar-se.
                         A mulher, filha dos Barões do Cerro Alegre, levara-lhe a melhor porção da sua
                  vida.


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