Page 124 - 2M A INTRUSA
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                         A baronesa abandonava-se, com desânimo, sentindo-se muito só. Os outros
                  esperavam, voltados para Assunção. Ele começou:


                         – Esta moça, que toda a gente recebeu com certa malignidade, de que eu não
                  fui isento, exerce o cargo de governanta desta casa para manter uma velha
                  paralítica e um velho cego, verdadeiros cacos humanos, que ela visita todas as
                  quartas-feiras piedosamente e de quem é o amparo. Filha única de um advogado
                  brasileiro, Constantino Galba e neta materna do General Vitalino Ortiz, logo que
                  perdeu a mãe, foi mandada a educar num dos melhores colégios da França, onde
                  viveu até que, por morte do pai, ficando quase reduzida à miséria, voltou ao Brasil.
                  Aqui, por toda a família viu-se entre dois criados, uma velha que já fora ama do pai,
                  e o marido, antigo camarada do avô. Bens, só tinha uma casinhola velha em que se
                  acomodou com o casal dos derradeiros amigos. Encararam os três a vida com
                  ânimo. O homem trabalhava ainda e viveram quase sete anos dos recursos desse
                  trabalho e de outros, incertos, de D. Alice: costuras... pinturas... bordados... Afinal lá
                  chegou um dia em que o velho teve de sair de cena. Cegou. Trabalhara demais.
                  Com o desgosto e outras fadigas da idade, fica-lhe a mulher paralítica; e eis a nossa
                  D. Alice entre esses dois seres de redobrado peso. Redobrou também ela de
                  atividade nos trabalhos manuais... propôs-se a dar lições... mas não lhe apareciam
                  discípulos; os trabalhos, mal remunerados, não matavam a fome aos seus velhos...
                  Foi por essa ocasião que apareceu no Jornal do Comércio          um anúncio oferecendo
                  um bom ordenado a uma senhora para governar a casa de um viúvo. Ela não
                  hesitou. Os seus velhos teriam pão, ela um pouco mais de descanso... A filha do
                  advogado, a neta do general, sujeitou-se a esse emprego para matar a fome aos
                  seus criados.


                         A baronesa olhava para Assunção, interrogativamente. Seria verdade tudo
                  aquilo?...
                         Ele continuava:

                         – A pobreza apura os dotes naturais da criatura; ela trouxe para aqui a
                  experiência do sacrifício... Ouçam agora: quando leva dinheiro para casa, o velho,
                  zeloso, apalpa-lhe o pescoço, os pulsos, os dedos, a ver se ela têm jóias... A velha
                  acha tudo pouco! Ele prega-lhe moral... desconfia... a outra queixa-se de
                  necessidades... Ela sossega a um, promete à outra e volta para os sarcasmos desta
                  situação e para as pirracinhas do Feliciano. Senhora baronesa! Isto que eu lhe digo
                  é verdade. Eu vi.

                         A baronesa nem pestanejava. Sumira-se-lhe a cor dos beiços. Estava lívida.
                         Argemiro curvou-se todo para o amigo:

                         – Viste?
                         – Vi! Um dia fui chamado a levar socorros espirituais a um doente. Era a
                  paralítica. Foi junto à sua cadeira de rodas, que o marido me contou toda a história
                  de D. Alice. Conheciam-me de nome e preferiram-me a outro padre qualquer,
                  exatamente para me falarem dela, e pediram-me que a protegesse! O velho tinha
                  medo; conhecia as tentações do mundo e a fraqueza das mulheres... queria ouvir da
                  minha boca palavras que o sossegassem. Sosseguei-o. No dia seguinte voltei, a
                  saber da paralítica; tinha melhorado. Estava eu lá, quando, percebendo os passos
                  de D. Alice, os velhos suplicaram-me que me ocultasse. Ela ficaria vexada se me

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