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Talvez fosse  menos rebelde,  menos sombrio  e desconfiado,  mais contente com a  vida,
                  se  ela vivesse. Deixando-me ainda na primeira  infância, bem cedo firmou-se o meu
                  caráter; mas, em contrapeso, bem cedo, me vieram o desgosto de viver,  o retraimento,
                  por desconfiar de todos, a capacidade de ruminar  mágoas sem comunicá-las a ninguém
                  - o que é um alívio sempre; enfim, muito antes do que era natural, chegaram-me o tédio,
                  o cansaço da vida e uma certa misantropia.

                        Notando o amigo que Cazuza dizia essas palavras com emoção muito forte e os
                  olhos úmidos, cortou-lhe a confissão dolorosa com um apelo alegre:

                        - Vamos, Carleto; conta o assassinato que


                        você perpetrou. Hildegardo ou Cazuza

                        conteve-se e começou a narrar.


                        - Eu tinha sete anos e minha mãe ainda vivia. Morávamos em Paula Matos... Nunca
                  mais subi a esse morro, depois da morte de minha mãe...

                        - Conte a história, homem ! - fez impaciente o doutor Ponciano.

                        - A casa, na frente, não se erguia, em nada, da rua; mas, para o fundo, devido à
                  diferença de nível, elevava-se um pouco, de modo que, para se ir ao quintal, a gente tinha
                  que descer uma escada de madeira de quase duas dezenas de degraus. Um dia, descendo
                  a escada,  distraído,  no  momento  em que punha o  pé no chão do quintal, o meu pé
                  descalço  apanhou  um  pinto  e  eu  o  esmaguei.  Subi  espavorido  a  escada,  chorando,
                  soluçando e gritando: "Mamãe, mamãe! Matei, matei..." Os soluços me tomavam a fala
                  e eu não podia acabar a frase. Minha mãe acudiu, perguntando: "O que é, meu filho !.
                  Quem é que você matou?" Afinal, pude dizer: "Matei um pinto, com o pé."

                        E contei como o caso se havia passado. Minha mãe riu-se, deu-me um pouco de
                  água de flor e mandou-me sentar a um canto: "Cazuza, senta-te ali, à espera da polícia."
                  E eu fiquei muito sossegado a Um canto, estremecendo ao menor ruído que vinha da rua,
                  pois esperava de fato a polícia. Foi esse o único assassinato que cometi. Penso que não é
                  da natureza daqueles  que  nos erguem às altas posições políticas, porque, até hoje, eu...

                        Dona Margarida,  mulher do doutor Ponciano, veio interromper-lhes a
                  conversa, avisando-os que o "ajantarado" estava na mesa.



                  Revista Sousa Cruz. Rio, fevereiro, 1922.
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