Page 20 -
P. 20
Talvez fosse menos rebelde, menos sombrio e desconfiado, mais contente com a vida,
se ela vivesse. Deixando-me ainda na primeira infância, bem cedo firmou-se o meu
caráter; mas, em contrapeso, bem cedo, me vieram o desgosto de viver, o retraimento,
por desconfiar de todos, a capacidade de ruminar mágoas sem comunicá-las a ninguém
- o que é um alívio sempre; enfim, muito antes do que era natural, chegaram-me o tédio,
o cansaço da vida e uma certa misantropia.
Notando o amigo que Cazuza dizia essas palavras com emoção muito forte e os
olhos úmidos, cortou-lhe a confissão dolorosa com um apelo alegre:
- Vamos, Carleto; conta o assassinato que
você perpetrou. Hildegardo ou Cazuza
conteve-se e começou a narrar.
- Eu tinha sete anos e minha mãe ainda vivia. Morávamos em Paula Matos... Nunca
mais subi a esse morro, depois da morte de minha mãe...
- Conte a história, homem ! - fez impaciente o doutor Ponciano.
- A casa, na frente, não se erguia, em nada, da rua; mas, para o fundo, devido à
diferença de nível, elevava-se um pouco, de modo que, para se ir ao quintal, a gente tinha
que descer uma escada de madeira de quase duas dezenas de degraus. Um dia, descendo
a escada, distraído, no momento em que punha o pé no chão do quintal, o meu pé
descalço apanhou um pinto e eu o esmaguei. Subi espavorido a escada, chorando,
soluçando e gritando: "Mamãe, mamãe! Matei, matei..." Os soluços me tomavam a fala
e eu não podia acabar a frase. Minha mãe acudiu, perguntando: "O que é, meu filho !.
Quem é que você matou?" Afinal, pude dizer: "Matei um pinto, com o pé."
E contei como o caso se havia passado. Minha mãe riu-se, deu-me um pouco de
água de flor e mandou-me sentar a um canto: "Cazuza, senta-te ali, à espera da polícia."
E eu fiquei muito sossegado a Um canto, estremecendo ao menor ruído que vinha da rua,
pois esperava de fato a polícia. Foi esse o único assassinato que cometi. Penso que não é
da natureza daqueles que nos erguem às altas posições políticas, porque, até hoje, eu...
Dona Margarida, mulher do doutor Ponciano, veio interromper-lhes a
conversa, avisando-os que o "ajantarado" estava na mesa.
Revista Sousa Cruz. Rio, fevereiro, 1922.