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Os dois calaram-se e, silenciosos, se puseram a fumar. Ambos pensavam numa
                  mesma  coisa:  em  encontrar  remédio  para  um  tão  deplorável  estado  de  coisas.  Mal
                  acabavam de fumar, Ponciano  disse desalentado:

                        - E não há  remédio. Hildegardo secundou-o.

                        - Não acho nenhum.

                        Continuaram  calados alguns  instantes,  Hildegardo  leu  ainda  um  jornal  e,
                        dirigindo-se  ao  amigo,
                  disse:

                        - Deus não me castigue, mas eu temo mais matar do que morrer. Não posso
                          compreender como esses
                  políticos,  que  andam  por  aí,  vivam  satisfeitos,  quando  a  estrada  de  sua  ascensão  é
                  marcada por cruzes. Se porventura matasse creia que eu, a que não tem deixado passar
                  pela  cabeça  sonhos  de  Raskólnikoff,  sentiria  como  ele:  as  minhas  relações  com  a
                  humanidade  seriam de todo outras,  daí em diante.  Não  haveria castigo que me tirasse
                  semelhante  remorso  da  consciência,  fosse  de  que  modo  fosse,  perpetrado  o
                  assassinato. Que acha você?

                        - Eu  também;  mas  você  sabe  o  que  dizem  esses  políticos  que  sobem  às
                  alturas  com  dezenas  de  assassinatos nas costas?

                        - Não.

                        - Que todos nós matamos.

                        Hildegardo sorriu e fez para o amigo com toda a serenidade:

                        - Estou de acordo. Já matei


                        também. O médico


                        espantou-se e exclamou:

                        - Você, Cazuza!

                        - Sim, eu! - confirmou Cazuza.

                        - Como? Se você ainda agora mesmo...

                        - Eu conto a coisa a você. Tinha eu sete anos e minha mãe  ainda vivia. Você sabe
                  que,  a bem dizer, não conheci minha mãe .

                        - Sei.

                        - Só me lembro dela no caixão  quando  meu pai, chorando,  me carregou para
                  aspergir  água benta sobre o seu cadáver. Durante toda a minha vida, fez-me muita falta.
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