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espírito aquieta-se, não tem efervescência nem angústias; as praxes estão fixas e as
fórmulas já sabidas. Pensei até em casar, não só para ter uns bate-bocas com a mulher
mas, também, para ficar mais burro, ter preocupações de "pistolões", para ser
promovido. Não o fiz; e agora, já que não digo a ente humano, mas ao discreto papel,
posso confessar porque. Casar-me no meu nível social, seria abusar-me com a mulher,
pela sua falta de instrução e cultura intelectual; casar-me acima, seria fazer-me lacaio dos
figurões, para darem-me cargos, propinas, gratificações, que satisfizessem às exigências
da esposa. Não queria uma nem outra cousa. Houve uma ocasião em que tentei solver
a dificuldade, casando-me. ou cousa que o valha, abaixo da minha situação. É a tal história
da criada... Aí foram a minha dignidade pessoal e o meu cavalheirismo que me
impediram.
Não podia, nem devia ocultar a ninguém e de nenhuma forma, a mulher com
quem eu dormia e era mãe dos meus filhos. Eu ia citar Santo Agostinho, mas deixo de
fazê-lo para continuar a minha narração...
Quando, de manhã, novo ou velho no emprego, a gente se senta na sua mesa
oficial, não há novidade de espécie alguma e, já da pena, escreve devagarinho: "Tenho a
honra", etc., etc.; ou, republicanamente, "Declaro-vos. para os fins convenientes", etc..
etc. Se há mudança, é pequena e o começo é já bem sabido: "Tenho em vistas"... - ou "Na
forma do disposto"...
Às vezes o papel oficial fica semelhante a um estranho mosaico de fórmulas e
chapas; e são os mais difíceis, nos quais o doutor Xisto Rodrigues brilhava como mestre
inigualável.
O doutor Xisto já é conhecido dos senhores, mas não é dos outros gênios da
Secretaria dos Cultos. Xisto é estilo antigo. Entrou honestamente, fazendo um concurso
decente e sem padrinhos. Apesar da sua pulhice bacharelesca e a sua limitação
intelectual, merece respeito pela honestidade que põe em todos os atos de sua vida,
mesmo como funcionário. Sai à hora regulamentar e entra à hora regulamentar. não
bajula. nem recebe gratificações.
Os dous outros, porém, são mais modernizados. Um é "charadista", o homem que
o diretor. consulta, que dá as informações confidenciais, para o presidente e o ministro
promoverem os amanuenses. Este ninguém sabe como entrou para a secretaria; mas
logo ganhou a confiança de todos, de todos se fez amigo e, em pouco, subiu três passos
na hierarquia e arranjou quatro gratificações mensais ou extraordinárias. Não é má
pessoa, ninguém se pode aborrecer com ele: é uma criação do ofício que só amofina os
outros, assim mesmo sem nada estes saberem ao certo, quando se trata de promoções.
Há casos muito interessantes; mas deixo as proezas dessa inferência burocrática, em que
o seu amor primitivo a charadas, ao logogrifo e aos enigmas pitorescos pôs-lhe sempre
na alma uma caligem de mistério e uma necessidade de impor aos outros adivinhação
sobre ele mesmo. Deixo-a, dizia, para tratar do "auxiliar de gabinete". É este a figura
mais curiosa do funcionalismo moderno. É sempre doutor em qualquer cousa; pode ser
mesmo engenheiro hidráulico ou eletricista. Veio de qualquer parte do Brasil, da Bahia
ou de Santa Catarina, estudou no Rio qualquer cousa; mas não veio estudar, veio arranjar
um emprego seguro que o levasse maciamente para o fundo da terra. donde deveria