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dera, em Londres,  em agradecimento a não sei que serviço prestado por meu avô. Ao
                  morrer meu  avô, chamou meu pai e  lhe disse: "Filho, tenho este  livro aqui, escrito em
                  javanês.  Disse-me quem  mo deu que ele evita desgraças e traz felicidades para quem o
                  tem. Eu não sei nada ao certo. Em todo o caso, guarda-o;  mas,  se  queres  que  o  fado
                  que  me  deitou  o  sábio  oriental  se  cumpra,  faze  com  que  teu  filho  o entenda, para
                  que sempre a nossa raça seja feliz." Meu pai, continuou o velho barão, não acreditou
                  muito na história; contudo, guardou o livro. Às portas da morte, ele mo deu e disse-me o
                  que prometera ao pai. Em começo, pouco caso fiz da história do livro. Deitei-o a um canto
                  e fabriquei minha vida. Cheguei até a esquecer-me dele; mas, de uns tempos a esta parte,
                  tenho  passado por tanto desgosto,  tantas desgraças têm caído  sobre a minha velhice
                  que  me  1embrei do talismã da  família. Tenho que o ler, que o  compreender, se não
                  quero que os  meus  últimos  dias anunciem  o desastre  da minha  posteridade; e,  para
                  entendê-lo, é claro, que preciso entender o javanês. Eis aí.

                       Calou-se  e  notei  que  os  olhos  do  velho  se  tinham  orvalhado.  Enxugou
                  discretamente os olhos e perguntou-me se queria ver o tal livro. Respondi-lhe que sim.
                  Chamou  o  criado,  deu-lhe  as  instruções  e  explicou-me  que  perdera  todos  os  filhos,
                  sobrinhos, só lhe restando  uma  filha  casada,  cuja  prole, porém, estava reduzida a um
                  filho, débil de corpo e de saúde frágil e oscilante.

                       Veio o livro. Era um velho calhamaço, um in-quarto antigo, encadernado em couro,
                  impresso  em grandes letras, em um papel amarelado e grosso. Faltava a folha do rosto
                  e por isso não se podia ler a data da impressão. Tinha ainda umas páginas de prefácio,
                  escritas  em  inglês,  onde  li  que  se  tratava  das  histórias  do  príncipe  Kulanga,  escritor
                  javanês de muito mérito.

                       Logo  informei  disso  o velho  barão que, não percebendo que eu tinha chegado aí
                  pelo inglês, ficou tendo em alta consideração o meu saber malaio. Estive ainda folheando
                  o cartapácio, à laia de quem sabe magistralmente aquela espécie de vasconço, até que
                  afinal contratamos as condições de preço e de hora, comprometendo-me a fazer com
                  que ele lesse o tal alfarrábio antes de um ano.

                       Dentro em pouco, dava a minha primeira lição, mas o velho não foi tão diligente
                  quanto eu. Não conseguia aprender a distinguir e a escrever nem sequer quatro  letras.
                  Enfim,  com  metade  do  alfabeto levamos um mês e o Senhor Barão de Jacuecanga não
                  ficou lá muito senhor  da  matéria:  aprendia  e desaprendia.

                       A filha e o genro (penso que até aí nada sabiam da história do livro) vieram a ter
                  notícias do estudo do velho; não se incomodaram. Acharam graça e julgaram a coisa boa
                  para distraí-lo.

                       Mas com o que tu vais ficar assombrado, meu caro Castro, é com a admiração que
                  o genro ficou tendo pelo professor de javanês. Que coisa Única! Ele não se cansava de
                  repetir: “É um assombro! Tão moço! Se eu soubesse isso, ah! onde estava !”

                       O  marido  de  Dona  Maria  da  Glória  (assim  se  chamava  a  filha  do  barão),  era
                  desembargador, homem relacionado e poderoso; mas não se pejava em mostrar diante
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