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que numero. E preciso não te esqueceres que entrementes continuei estudando o meu
                  malaio, isto é, o tal javanês. Além do alfabeto, fiquei sabendo o nome de alguns autores,
                  também  perguntar  e  responder  "como  está  o  senhor?"  -  e  duas  ou  três  regras  de
                  gramática, lastrado todo esse saber com vinte palavras do léxico.

                        Não imaginas as grandes dificuldades com que lutei, para arranjar os quatrocentos
                  réis da viagem! É mais fácil - podes ficar certo - aprender o javanês... Fui a pé. Cheguei
                  suadíssimo;  e,  Com  maternal  carinho,  as  anosas  mangueiras,  que  se  perfilavam  em
                  alameda diante da casa do titular, me receberam,  me acolheram e me reconfortaram.
                  Em toda a minha vida, foi o único momento em que cheguei a sentir  a  simpatia  da
                  natureza...

                        Era uma  casa enorme que parecia estar deserta; estava mal tratada,  mas não  sei
                  porque  me veio pensar que nesse mau tratamento havia  mais desleixo e  cansaço de
                  viver  que  mesmo  pobreza.  Devia  haver  anos  que  não  era  pintada.  As  paredes
                  descascavam  e  os  beirais  do  telhado,  daquelas  telhas  vidradas  de  outros  tempos,
                  estavam desguarnecidos aqui e ali, como dentaduras decadentes ou mal cuidadas.

                        Olhei um pouco o jardim e  vi a pujança vingativa com que a  tiririca e o carrapicho
                  tinham expulsado os tinhorões e as begônias. Os crótons continuavam, porém, a viver
                  com a sua folhagem de cores mortiças.


                        Bati. Custaram-me a abrir. Veio, por fim, um antigo preto africano, cujas barbas e
                  cabelo de algodão davam à sua fisionomia uma aguda impressão de velhice, doçura e
                  sofrimento.

                        Na sala, havia uma galeria de retratos: arrogantes senhores de barba em colar se
                  perfilavam enquadrados em imensas molduras douradas, e doces perfis de senhoras, em
                  bandós, com grandes leques, pareciam querer subir aos ares, enfunadas pelos redondos
                  vestidos à  balão;  mas, daquelas  velhas coisas, sobre as  quais  a  poeira  punha  mais
                  antiguidade  e  respeito,  a  que  gostei  mais  de  ver  foi  um  belo  jarrão  de  porcelana da
                  China ou da Índia, como  se diz. Aquela  pureza da louça, a sua fragilidade, a  ingenuidade
                  do desenho e aquele seu fosco brilho de luar, diziam-me a mim que aquele objeto tinha
                  sido feito por mãos de criança, a sonhar, para encanto dos olhos fatigados dos velhos
                  desiludidos...

                        Esperei um instante o dono da casa. Tardou um pouco. Um tanto trôpego, com
                  o lenço de alcobaça na mão, tomando veneravelmente o simonte de antanho, foi cheio
                  de respeito que o vi chegar. Tive vontade de  ir-me  embora.  Mesmo  se  não  fosse  ele
                  o  discípulo,  era  sempre  um  crime  mistificar  aquele  ancião,  cuja velhice trazia à tona
                  do meu pensamento alguma coisa de augusto, de sagrado. Hesitei, mas fiquei.

                        - Eu sou, avancei, o professor de javanês, que o senhor disse precisar.

                        - Sente-se, respondeu-me o velho. O senhor é daqui, do Rio?
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