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Por isso, sinto-me bem contente de não ser obrigado a caçar, nos belchiores e
cafundós domésticos, bugigangas, para agradar futuros e problemáticos imperantes,
porque teria que dar a elas alma, tentativa em projeto que, além de inatingível, é
supremamente sacrílego.
De resto, para ser completa essa reconstrução do passado ou essa visão dele,
não se podia prescindir de certos utensílios de uso secreto e discreto, nem tampouco
esquecer determinados instrumentos de tortura e suplício, empregados pelas
autoridades e grão-senhores no castigo dos seus escravos.
Há, no passado, muitas coisas que devem ser desprezadas e inteiramente
eliminadas, com o correr do tempo, para a felicidade da espécie, a exemplo do que a
digestão faz, para a do indivíduo, com certas substâncias dos alimentos que ingerimos...
Mas... estou na cova e não devo relembrar aos viventes coisas dolorosas.
Os mortos não perseguem ninguém; e só podem gozar da beatitude da
superexistência aqueles que se purificam pelo arrependimento e destroem na sua alma
todo o ódio, todo o despeito, todo o rancor.
Os que não conseguem isso - ai deles!
Alonguei-me nessas considerações intempestivas, quando a minha tenção era
outra.
O meu propósito era dizer a vocês que o enterro esteve lindo. Eu posso dizer
isto sem vaidade, porque o prazer dele, da sua magnificência, do seu luxo, não é
propriamente meu, mas de vocês; e não há mal algum que um vivente tenha um naco de
vaidade, mesmo quando é presidente de alguma coisa ou imortal da Academia de Letras.
Enterro e demais cerimônias fúnebres não interessam ao defunto; elas são feitas
por vivos para vivos.
É uma tolice de certos senhores disporem nos seus testamentos como devem ser
enterrados. Cada um enterra seu pai como pode - é uma sentença popular, cujo
ensinamento deve ser tomado no sentido mais amplo possível, dando aos
sobreviventes a responsabilidade total do enterro dos seus parentes e amigos.
tanto na forma como no fundo.
O meu, feito por vocês, foi de truz. O carro estava soberbamente agaloado; os
cavalos bem paramentados e empenachados; as riquíssimas coroas, além de ricas, eram
lindas. Do Haddock Lobo, daquele casarão que ganhei com auxílio das ordens terceiras,
das leis, do câmbio e outras fatalidades econômicas e sociais que fazem pobres a maior
parte dos sujeitos e a mim me fizeram rico; da porta dele até o portão de São João Batista,
o meu enterro foi um deslumbramento. Não havia, na rua, quem não parasse para
contemplá-lo, descobrindo-se ritualmente; não havia quem não perguntasse quem ia ali.
Triste destino o meu, esse de, nos instantes do meu enterramento, toda uma
população de uma vasta cidade querer saber o meu nome e dali a minutos, com a
última pá de terra deitada na minha sepultura, vir a ser esquecido, até pelos meus