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Carta de um Defunto Rico
"MEUS CAROS amigos e parentes. Cá estou no carneiro n.º 7 ..., da 3.ª quadra,
à direita, como vocês devem saber, porque me puseram nele. Este Cemitério de São
João Batista da Lagoa não é dos piores. Para os vivos, é grave e solene, com o seu severo
fundo de escuro e padrasto granítico. A escassa verdura verde-negra das montanhas de
roda não diminuiu em nada a imponência da antiguidade da rocha dominante nelas. Há
certa grandeza melancólica nisto tudo; mora neste pequeno vale uma tristeza teimosa
que nem o sol glorioso espanca... Tenho, apesar do que se possa supor em contrário, uma
grande satisfação; não estou mais preso ao meu corpo. Ele está no aludido buraco,
unicamente a fim de que vocês tenham um marco, um sinal palpável para as suas
recordações; mas anda em toda a parte.
Consegui afinal, como desejava o poeta, elevar-me bem longe dos miasmas
mórbidos, purificar-me no ar superior e bebo, como um puro e divino licor, o fogo claro
que enche os límpidos espaços.
Não tenho as dificultosas tarefas que, por aí, pela superfície da terra, atazanam
a inteligência de tanta
gente.
Não me preocupa, por exemplo, saber se devo ir receber o poderoso imperador
do Beluchistã com ou
sem colarinho; não consulto autoridades constitucionais para autorizar minha mulher a
oferecer ou não lugares do seu automóvel a príncipes herdeiros - coisa, aliás, que é
sempre agradável às senhoras de uma democracia; não sou obrigado, para obter um
título nobiliárquico, de uma problemática monarquia, a andar pelos adelos, catando
suspeitas bugigangas e pedir a literatos das ante-salas palacianas, que as proclamem
raridades de beleza, a fim de encherem salões de casas de bailes e emocionarem os
ingênuos com recordações de um passado que não devia ser avivado.
Afirmando isto, tenho que dizer as razões. Em primeiro lugar, tais bugigangas
não têm, por si, em geral, beleza alguma; e, se a tiveram era emprestada pelas almas
dos que se serviram delas. Semelhante beleza só pode ser sentida pelos descendentes
dos seus primitivos donos.
Demais, elas perdem todo o interesse, todo o seu valor, tudo o que nelas possa
haver de emocional, desde que percam a sua utilidade e desde que sejam retiradas dos
seus lugares próprios. Há senhoras belas, no seu interior, com os seus móveis e as
costuras; mas que não o são na rua, nas salas de baile e de teatro. O homem e as suas
criações precisam, para refulgir, do seu ambiente próprio, penetrado, saturado das dores,
dos anseios, das alegrias de sua alma; é com as emanações de sua vitalidade, é com
as vibrações misteriosas de sua existência que as coisas se enchem de beleza.
É o sumo de sua vida que empresta beleza às coisas mortais; é a alma do
personagem que faz a grandeza do drama, não são os versos, as metáforas, a linguagem
em si, etc., etc. Estando ela ausente, por incapacidade do autor, o drama não vale nada.